Mafalda Banquart

VERSÃO PDF

Um formulário de candidatura e quatro espetáculos depois

 

A primeira parte deste texto encontra-se algures perdida em 2018, num formulário que preenchi quando me candidatei ao Recurso. Nesse sentido, nesta segunda parte a que agora me dedico, vou proceder a uma reconstituição conjetural desse conteúdo, projetando-lhe a minha vivência e experiência a partir de então, à boa maneira das reconstituições conjeturais (esse é, por exemplo, o modo como conhecemos o que Aristóteles escreveu e isso foi no século IV a.c. por isso, mal comparado, parece-me que em relação a 2018 até tenho vantagem).

Fazendo um apanhado do que estava em questão na altura : um trocadilho com o nome do curso, evocando o contexto académico, que apontava para um tentar de novo. E que seria de certa forma a situação em que xs participantes do curso se encontravam, ora porque iam tentar de novo outra coisa ( se não fossem já da área artística) , ora porque – esse era o meu caso – estavam ligados à área artística mas a sua formação ou prática não estava orientada no sentido de serem os responsáveis pelas criações em que se envolviam. Não era, portanto, um curso curso, era um re muitas coisas, um recomeço, um refazer, um reorientar. Resumo feito. Vou agora redizer as coisas que disse no formulário porque entretanto se acrescentaram sentidos de recurso para lá do trocadilho.

Afinal não havia nada para recomeçar, era só continuar e isso foi uma coisa que ficou logo vista nas primeiras semanas, quando o Rogério Nuno Costa me disse que havia uma performance dele que tinha começado quando ele tinha para aí seis anos a fazer playback do playback do Carlos Paião. Pronto, também decidi logo que todos os meus projetos antes de começar já tinham começado. Por exemplo, vou estrear hoje um espetáculo(1) que começou no século IV a.c quando o Platão decidiu ditar umas coisas ao escrivão dele, que eu agora leio numa décima quinta edição da Gulbenkian de A República.

Assim sendo, o que eu fazia antes – ser atriz – não era para se apagar, agora que eu tinha decidido não estar mais na posição de ser dirigida, maquilhada e vestida para ser eu a vestir, maquilhar e dirigir. E o que eu fazia antes – por exemplo sessões fotográficas de noivas – podia servir de material para construir tudo o que veio depois. Na altura o José Maria Vieira Mendes disse-me: então porque é que não fazes um espetáculo vestida de noiva e a falar dessas coisas (essas coisas eram, no geral, a zanga que eu sentia com o meu percurso como atriz) e eu entretanto já vou no segundo espetáculo em que me visto de noiva. 

Por esta altura o meu esquema cognitivo estava lentamente a mudar, eu ia deixando de ver tanta teleologia nas coisas, e de compreender o meu percurso como um processo fénix – queimar e esquecer a forma anterior para passar a ser outra, nova – e a compreendê-lo mais como uma metamorfose, que é um processo contínuo – a nova forma existe a partir da anterior, é devindo a partir da primeira que a segunda passa a existir, não há recusa da forma precedente. Isso também quer dizer que as formas não se alinham segundo um movimento progressivo, em que a forma nova é um modelo mais avançado ou maturado da anterior. A infância não é um ainda não e a velhice um já não. A forma atual é só mesmo isso, atual(2) 

Por isso também nunca houve o eu ainda não sou artista, e assim já vamos longe daquele primeiro sentido em que recurso evocava o contexto académico. Nunca estivemos numa posição em que o formador possuía algo que nós ainda não possuíamos, e que só depois de nos ser transmitido nos permitiria assumir-nos como artistas. Xs formadores trataram-nos imediatamente como artistas. Desenhou-se desde logo uma dinâmica em que existíamos fora da lógica hierárquica mais hegemónica do contexto académico. Era uma dinâmica em que estávamos todxs envolvidos, e se calhar mais próxima de um ideal académico onde é suposto todxs aprenderem com todxs. Neste sentido a minha vivência no Recurso não foi bem um tentar de novo –  que era a minha expectativa, e a qual cheguei a expressar no tal formulário.  No geral recurso significou mais um “conjunto de meios disponíveis para serem utilizados”(3) que estivemos seis meses a partilhar – todxs com todxs. 

Se houve algo académico nisto, só mesmo se evocarmos a Academia, a escola de Platão, ou as outras escolas filosóficas de Atenas, que, mais do que centros de ensino, eram locais de produção de modos de vida, de sujeição a práticas que respondiam à pergunta: como devo viver? De facto, o que experienciei no Recurso não foram aprendizagens, no sentido de um reservatório que é preciso preencher. Foram modos intersubjetivos de construção de pensamento e modos de existir em conjunto, dos quais certos exercícios artísticos foram resultando. E, portanto, é inevitavelmente assim que perspetivo o que é a arte e o que é ser-se artista desde então. Não a vejo como uma esfera separada a que nós pertencemos ou não pertencemos. Nós somos constitutivos dessa esfera, que só se pode construir neste intercâmbio de pensamento, no ver e ser visto pelxs outres. 

E é sobretudo a marca da sujeição a essa convivência que estrutura a minha prática artística, pelo menos até agora. A continuidade das formas, a construção intersubjetiva de pensamento, a ideia de que os meus projetos nunca são só meus e sobretudo a convicção de que criar é só uma procura ativa de outros modos de existir, sobretudo de existir em conjunto, são os princípios estéticos de todas as minhas criações. 

Em manifesta., o espetáculo que apresentei com a Joana Mont’Alverne, o Tiago Araújo, o Tiago Jácome e o Emanuel Santos no final do Recurso, escrevemos um manifesto que era uma festa e em que desejávamos que o cuidado fosse instaurado como modo de relação básica entre todas as coisas. A exploração plástica e material eram só a contraparte sensível de que precisávamos para expressar este desejo. E, note-se, este desejo é precisamente um desejo de existir de um modo diverso da anterior dinâmica existencial em que me via imersa no contexto da minha profissão e com a qual estava zangada inicialmente, marcada por lógicas de competição e também de mercado, sujeita a valorizações e desvalorizações arbitrárias da minha imagem e do meu trabalho. Procurando esteticizar a partilha de recursos que fomos vivendo até então, construímos um manifesto, demos uma festa, as pessoas viram um espetáculo e há cerca de um mês fizemos esta vivência coletiva existir juridicamente, sob o nome de Silent Party(4). Mais do que um coletivo artístico, a Silent Party é o resultado de termos extraído e adotado a partir da experiência do Recurso uma forma de existir em coletividade que é a de estarmos sozinhos juntes, de articular o nível da agência, vontade e identidade individuais com o nível da pertença e edificação comuns. De priorizarmos a cooperação, o cuidado e a maximização de recursos para todes. 

Em IMPAR e IMPARidades, que criei com o Tiago Jácome – e que é o meu namorade – estávamos cansades da rigidez heterossexual que foi esculpindo as nossas dinâmicas afetivas, tendo-nos proposto a questioná-la, e acabando por trocá-la por um mutualismo facultativo, que nos tem servido para vivermos mais livremente tanto as nossas identidades de género quanto as nossas sexualidades.

Em What Plato Said to Ariana Grande, que é um espetáculo-podcast, eu e o Emanuel Santos estávamos fartes de ter vergonha de gostar de pop, de sermos infantilizados por isso e de nos vermos obrigades a legitimar o ecletismo das fontes que usamos para pensar o mundo. Portanto aproveitámos esta esfera da arte, mais livre que o contexto académico e mais visível do que os nossos quartos de adolescência onde ouvíamos pop às escondidas, para praticar outras formas de construir pensamento. E convocámos outras experiências subjetivas para construi-lo connosco, os nossos convidades, sempre convencidos que é só nessa convocação e no funcionamento em rede que as nossas propostas artísticas fazem sentido.

Os meus/nossos espetáculos são, antes de mais, práticas a que nos submetemos tendo em vista tentativas de responder aquela pergunta que também orientava as escolas filosóficas da antiguidade: como queremos viver? É justamente assim que Foucault lê as propostas éticas das ditas escolas. O sujeito ético não é já dado ou determinado por um certo código moral ou ético que o precede. Ele constitui-se, e pode ser responsável por essa constituição, interferindo ativamente no que o determina. Em tais escolas seguiam-se com rigor regras que visavam a constituição dos sujeitos éticos que os seus integrantes aspiravam vir a ser. Também nós na Silent Party andamos à procura de interferir ativamente no que nos determina, usando a nossa prática artística como a técnica da nossa constituição e a arte como o modo de expressão privilegiado dos efeitos das nossas experiências.

E que os nossos princípios estéticos sejam os nossos princípios éticos, é uma magia que devemos à Estrutura (além de já lhes estarmos a dever o curso inteiro).

 

Referências:

(1) O espetáculo em questão é o What Plato said to Ariana Grande e estreou a 25 de Março de 2022, no Teatro Municipal do Porto, no contexto do Double Trouble.

(2) Emanuele Coccia explora estas ideias em Metamorfoses

(3) “recurso”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/recurso [consultado em 26-03-2022].

(4) Uma silent party é um evento festivo onde os participantes dançam juntos ao som de música ouvida em headphones. Consoante a festa, a música pode ser a mesma para todes, lançada pelo DJ para os headphones ou então os participantes ouvem a sua própria playlist.