No livro Uma coisa não é outra coisa, dedico atenção a uma história do teatro moderno que narra a história do
teatro e da literatura dramática como a de duas disciplinas inseparáveis, seja por uma relação de proximidade e tentativa de
encontro,
seja por uma relação de antinomia e recusa.
Tem sido frequente, em conversas sobre o livro, perguntarem-me onde ficam textos e espetáculos contemporâneos
que não encaixam nesta
linhagem ou não se veem por ela representados. Estas perguntas surgem invariavelmente atreladas a exemplos concretos e pessoais que
revelam uma necessidade do falante em se identificar e encontrar o seu lugar numa história ou instituição ou em explicar ou descrever
o que vê ou encontra em teatros e livros.
.
Habitualmente, para responder às dúvidas ou angústias, recorro ao meu próprio exemplo enquanto membro do Teatro Praga, onde trabalho sobretudo como escritor mas raramente como dramaturgo. Utilizo estas duas denominações, para diferenciar o trabalho que faço quando escrevo para espetáculos como Zululuzu ou Jângal (escritor), do que faço quando escrevo peças como Max e René ou Bilingue (dramaturgo).
É verdade que os textos que escrevi para o espetáculo Zululuzu ou Jângal não são escritos dentro do mesmo campo semântico de Max e René ou Bilingue. Nestes últimos, estava convencido, ao pensá-los, de que queria escrever uma “peça de teatro”, nos primeiros, estava em diálogo com as outras pessoas que estavam a pensar o espetáculo comigo e que produziam também elas textos que pretendiam dar fala a ideias ou preencher momentos específicos do espetáculo. No caso destes textos, as suas origens são muito diversas e a sua autoria dispersa. Na maior parte dos casos, sofreram tantos cortes, edições e alterações durante o processo que a sua ascendência e mão ficaram diluídas. Em outros casos, lembro-me de quem os escreveu (e não fui eu). De qualquer das formas, nunca existiu a ideia de “escrever uma peça” na cabeça dos “autores” dos textos.
Nesta descrição, que faço agora com as memórias que me restam, poderia encontrar, tal como muitas outras companhias a trabalhar hoje em dia em processos coletivos, algumas características comuns, como a ausência de uma autoria única, a não inserção na linhagem dramática ou a despreocupação com a tentativa de uniformizar ou encontrar um estilo (como é habitual acontecer na escrita literária). No entanto, estas características não são distintivas de um tipo de escrita porque elas podiam ser utilizadas e encontradas em peças de teatro (literatura dramática). Além disso, nada me garante que um dia os textos produzidos em Tropa-Fandanga, Jângal ou Zululuzu, da autoria do Teatro Praga com a colaboração de outras pessoas, não possam vir a ser publicados e a entrar no “cânone” da literatura dramática. Finalmente, mesmo aceitando que estas três características que enumerei diferenciam os textos que escrevo no Teatro Praga das peças de literatura dramática, terei sempre de concluir que elas dizem muito pouco sobre os textos em causa, o que me faz duvidar da sua utilidade enquanto descrições.
Quando termino esta argumentação que acabei agora de reproduzir, as pessoas com quem estou a ter esta conversa nem sempre se mostram satisfeitas. Algumas têm-se manifestado mais confundidas e parecem olhar-me como para um charlatão. Sei que um dos motivos porque o fazem é porque o meu discurso parece navegar entre uma aceitação de definições, divisões e fronteiras, e, por outro, uma mobilidade dessas mesmas definições, o que parece ser contraditório e reflexo de quem não sabe o que quer ou pensa.
Em Uma coisa não é outra coisa chamo a atenção para a preponderância da pergunta “O que é” (“Quem és tu?”), descrevendo a sua linhagem na filosofia moderna e o modo como ela contagia a literatura nos estudos de teatro e afins. A pergunta assenta numa ideia de conhecimento que pretende cristalizar o objeto a quem é feito a pergunta. Quando coloco esta pergunta, aguardo a resposta certa que me permita identificar SEMPRE aquele objeto. Procuro uma definição: teatro é ação; teatro é uma relação em direto com o espectador; literatura dramática é literatura com um projeto teatral; “performance writing”1 é uma escrita dentro do espetáculo, etc.. A pergunta “O que é” contém em si própria uma resposta ou tipo de resposta, um esquema de pensamento, e portanto está indisponível para a desorientação e mobilidade que a minha argumentação está a pedir.
Judith Butler ajuda-nos a lidar com este aparente paradoxo quando não recusa o interesse da pergunta, mas colocando-a com a consciência de que ela não tem resposta. A pergunta tem espaço para a desorientação. O facto de se perguntar significa que se está a abrir espaço para um diálogo com o Outro, que se quer ouvi-lo, que não se vai tirar conclusões sobre a identidade alheia e que se está disponível para lidar com a desorientação e com um processo democrático e coletivo de construção da humanidade.
É este ponto a que quero então chegar: os dois “tipos” de textos a que me referi, as duas descrições que fiz na tentativa de responder à pergunta que me é colocada (“O que é?”) conduzem-me a duas respostas diferentes que procuram diferenciar dois textos. No entanto, nada me garante que, no futuro, ou em outras circunstância, essas respostas possam ser outras ou os textos em causa passar de uma família para a outra, porque a sua identidade resulta de uma “desorientação”, de um “processo democrático e coletivo de construção”, mas também de destruição de uma certa ideia de teatro. Esta perspetiva considera os objetos como identidades em movimento, não cristalizadas e passíveis de diferentes existências, mas também dá ao “autor” dessas identidades a possibilidade de lhes atribuir significados, consoante o nome que lhes der.
Neste sentido, gostaria que do livro se retirasse mais do que um processo histórico concreto e uma relação reconhecível entre literatura dramática e teatro, um modo de pensar e argumentar que pode ser aplicado a outros termos e definições, a outras identidades. O livro Uma coisa não é outra coisa levou-me à crítica da identidade e a um pensamento que nos ajuda a conviver com um mundo, com o qual convivemos diariamente, que nos pede a resposta e a definição. Essa aprendizagem, que é diária, inconstante e exigente, liberta também de uma angústia resultante de uma certa ideia de certeza e completude a que nos habituou certa história e pensamento e ajuda a dialogar com quem pergunta e com o facto de as respostas e as descrições serem provisórias e insuficientes para dar conta do que fazemos.
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1 Ver texto de José Nunes, “Falta título”