Não fazer isto porque isto se faz assim Maria João Guardão




É agosto, são 15h47 e há uma camioneta a entupir o trânsito na Rua do Almada. É preciso abrir a porta grande da mala voadora para entrarem cinco rolos gigantes de plástico-bolha para as mãos do Tiago, da Joana, do Tiago, da Mafalda e do Emanuel, que os agarram, fotografam e cheiram antes de os fazerem rolar para a black box, lá ao fundo, contornando o dispositivo em construção da Susana, da Joana, da Sofia, do João e da Mafalda, enquanto o Mário filma o filme. Faltam 15 dias para a apresentação final dos trabalhos, passam 6 meses desde que o Recurso começou.


A haver lugar a resumo, escrever-se-ia qualquer coisa como: Recurso é um laboratório de criação teatral desenhado por criadores, com criadores e para criadores. Começa com Cátia Pinheiro & José Nunes (Estrutura), toma corpo em colaboração com Jorge Andrade, José Capela (mala voadora) e José Maria Vieira Mendes, e, depois, seguindo o caminho das afinidades, convoca uma família de pares com posições diferentes em disciplinas diversas para a formação - de Francisco Frazão a Paula Sá Nogueira, de Rachael Walton (Third Angel) a Vânia Rodrigues ou Daniel Worm. Entre março e setembro de 2018, esta família que se foi construindo ao longo da prática e do tempo encontra-se com outra, ainda em construção: 11 artistas com várias formações e geografias, idades entre os 20 e os 33 e uma vontade de trabalhar no Porto em comum. De qualquer maneira, resumos são caminhos improváveis para se chegar a algum lado dentro das coisas, é melhor ir com quem lá passa todos os dias.
“Recurso é um curso para criadores onde ninguém impôs uma forma de fazer as coisas. As formas diferentes de fazer foram contaminando a forma de eu ver e pensar e fazer as coisas”, Emanuel Santos disse.


Como tudo o que levamos a peito, o Recurso nasce de uma falha detetada na primeira pessoa do plural.
Cátia Pinheiro (CP): Tem muito a ver com partilhar a nossa experiência, como gostávamos que tivessem feito connosco. Partilhar ferramentas que nos custaram muito a adquirir, sempre por tentativa e erro. Há uma lacuna grande de formação para criadores em teatro, identificámo-la nas nossas formações. Enquanto criadores nós nunca estivemos num sítio de experimentação a nível de formação. A formação em teatro é toda formatada para o intérprete, tanto em Lisboa como no Porto.
José Nunes (JN): A formação teatral normalmente está associada à história da literatura dramática, e a nós interessava-nos mais que estivesse ligada ao pensamento crítico, à estética e à filosofia, ao conhecimento entre pares. De algum modo queríamos cobrir todos os campos necessários para a criação de um espetáculo teatral, desde pensar e escrever um projeto a experimentá-lo e desenvolvê-lo, conceção plástica e produção incluídas. A partir daí começámos a partilhar estas lógicas, convidando o núcleo de formadores e sempre pensando em pessoas que nos são próximas, que são família.
José Maria Vieira Mendes (JMVM): A Estrutura não é uma escola nem este Recurso dura 2 anos, mas adota um modelo que já existe internacionalmente e que ultrapassa a divisória tradicional das universidades para os críticos e investigadores - os estudos teatrais - e depois as escolas para os intérpretes.
JN: A aprendizagem é o que é, e tu fazes dela o que quiseres. Podes fazer de uma aprendizagem péssima uma experiência riquíssima, como podes não usufruir nada de uma aprendizagem excelente.

A mala voadora em carne e osso, Jorge Andrade e José Capela, está em viagem quando a visito. É uma das poucas estruturas de criação com programa e casa próprias, um espaço run-by-artists numa cidade onde, apesar das revoluções operadas nos últimos anos, estes ainda escasseiam. O mesmo se aplica a laboratórios de criação teatral entre pares, sem a prática (apesar de tudo) continuada da dança. Passaram 15 anos sobre o Programa Gulbenkian de Criatividade e Criação Artística e o seu curso de Teatro (vários dos formandos de então são os formadores de agora), para evocar um modelo semelhante a este, em alcance e duração. Pergunto, por email, a pertinência da proposta do Recurso (apoiada pelo programa Criatório) no panorama da formação em criação teatral, sobretudo no que diz respeito ao Porto. Capela responde-me, situando-se primeiro, analisando depois, questionando do princípio ao fim. “Devo começar por dizer que não sei, nem sobre ensino de teatro, nem sobre o ensino de teatro em Portugal, o suficiente para ter uma opinião muito sólida. Não andei em escola de teatro nenhuma (fiz um curso de teatro noturno, de poucos meses, no TUP), tenho apenas algumas impressões gerais, e experiências de ensino muito específicas na área da cenografia. Para além disso, nunca defenderia “um” modelo de ensino – nem conservador, nem de ruturas – porque me parece que a pluralidade é fundamental. Devo ser aquilo a que se chama “inclusivo”. Apesar disso, posso constatar que alguma coisa não vai bem no teatro do Porto, sobretudo no que respeita às gerações mais novas.
Dada a quantidade de escolas de teatro e a qualidade pelo menos de algumas, não é compreensível que não haja estruturas a desenvolverem-se e a produzirem um trabalho que se torne relevante. E elas fazem falta porque, sem o tipo de vitalidade que se imagina que elas pudessem ter, a cena teatral do Porto é, de facto, marcadamente conservadora. Porque é que essas desejadas estruturas não existem? Não são apoiadas? Não lhes são dadas oportunidades? Não resistem à fortíssima força centrípeta de Lisboa? Desse ponto de vista, o problema poderá ser de natureza institucional, talvez não lhe seja alheia a ausência de política cultural do tempo de Rui Rio, e talvez haja uma inversão em curso, apesar de ainda não ser visível. A outra possibilidade pode ter a ver com o ensino das escolas de teatro do Porto. Não incidem sobre a criação? Incidem, mas apenas em níveis elementares, insuficientes para gerar criadorxs com autonomia? Incidem, mas obedecendo a modelos tradicionalistas? Não sei. Mas parece-me que esta iniciativa da Estrutura – especificamente centrada na criação – foi bastante pertinente, e a mala voadora sentiu que devia tornar-se parceira.”

Recurso*, diz o dicionário, vem do latim recursus e declina-se como “ato de procurar auxílio ou socorro; meio; o que serve para alcançar um fim; refúgio, proteção; remédio, cura; apelação, ato de recorrer a instância superior.”

No princípio, cada participante trazia questões que ganham nitidez no retrovisor.
João Ventura: Quando aqui cheguei a minha questão era como voltar a ter prazer a pensar, a estar em cena, a criar. Tinha necessidade de trabalhar com outras pessoas e, ao mesmo tempo, queria desenvolver a minha linguagem. Fiz a formação tradicional de ator (na Escola Superior de Teatro e Cinema) mas sempre com interesse no cruzamento de disciplinas e em trabalhar numa lógica performativa. Mas comecei a ficar muito desencantado com isto de ser ator, com a precaridade da profissão.
Joana Mont’Alverne: Apetecia-me sair da zona onde estava a trabalhar enquanto atriz. Apetecia-me fazer outra coisa, estar com outras pessoas. Andei na Soares dos Reis, fiz realização plástica do espetáculo, depois fui para a ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo) estudar cenografia e para a ACE – Escola de Artes, fazer interpretação. Estava muito apaixonada pela interpretação, mas quando comecei a trabalhar profissionalmente comecei a ficar muito cansada. Queria voltar a estudar, voltar a pensar – que era uma coisa que não me estava a acontecer na profissão.
Mafalda Lencastre: A minha formação passou pelo som, imagem, direção de arte e só depois, pelo teatro. Tenho o bicho criativo, mas não tenho o bicho do palco. Nunca consegui pensar só em teatro, interessa-me pensar a criação como um todo e aqui era essa a proposta.
Mário Negrão: Eu tenho formação técnica em som e imagem, não tenho background de teatro, mas ganhei-lhe o gosto. Gosto muito de escrever e queria melhorar as minhas capacidades de desenvolver conceitos e narrativas associadas ao espetáculo. E, por outro lado, estive emigrado e trabalho principalmente em vídeo, em casa, sozinho, e queria conhecer pessoas com intenções criativas próximas das minhas.
Susana Paixão: Fiz a minha formação na ESAP (Escola Superior Artística do Porto), só não fiz som, de resto passei por tudo, da acrobacia à estética teatral. O interesse era na abrangência, sais com bagagem total. Mas depois comecei a trabalhar e a ficar muito zangada com uma quantidade de coisas. Por exemplo, o elitismo da cena teatral, o espaço convencional do teatro, o desencontro entre os objetos artísticos e os públicos.
Emanuel Santos: Eu estudava estudos artísticos em Coimbra e fazia teatro no TEUC. E sempre achei que aquilo fazia muito sentido. Durante o dia tinha aulas que me explicavam o que era arte e à noite tinha oportunidade de as experimentar - há uma espécie de liberdade criativa no teatro universitário. Trabalhava muito em coletivo, mas achei que precisava de um espaço para me formar enquanto criador. Porque há esta minha necessidade de pensar a criação artística nas suas várias valências, e não só como intérprete, e este curso tinha isso tudo.
Joana Magalhães: Fiz a minha formação na ESMAE, o que quer dizer que aprendi a ser uma artesã do teatro, não uma artista. A questão era: como vamos fazer? Ou, estamos a fazer bem? Aqui as questões são: porque é que se faz? O que acrescentamos, artisticamente? O que passa por te responsabilizares pelo que estás a fazer.

Há 6 meses atrás, quando quase todos se desconheciam, os 11 artistas começaram a ser um coletivo. O desenho fez-se em mesas como esta, onde agora nos sentamos para comer e conversar, à beira do comboio.
CP: Queríamos criadores numa fase embrionária do percurso, fosse qual fosse a idade. Como critério de desempate queríamos mais mulheres que homens e que fossem maioritariamente do Norte ou tivessem vontade de criar no Porto.
JMVM: Queríamos pessoas que tivessem a urgência de querer fazer, mas também nos interessavam pessoas que estivessem a questionar as suas bases, a questionarem-se a si próprias, queríamos essa abertura. Sabemos que esses são os momentos decisivos, porque passámos e continuamos a passar todos por isso. Fazer um espetáculo é passar por esse processo de crise.
CP: E quisemos propor-lhes a criação coletiva, por isso escolhemos pessoas que praticam esse modo de criação para a formação.
JMVM: E quisemos criar um espaço em que os participantes passassem por uma experiência de criação coletiva eles próprios.
JN: Para pôr em prática o que foi transmitido
CP: Ou rejeitar!
JMVM: Para demonstrar que não existe UMA maneira de fazer. E que só experimentando é que se faz. E que é preciso lutar uns contra os outros.
CP: E negociar.
JMVM: E perceber que tudo o que achávamos que íamos concretizar de determinada maneira afinal não está a ser daquela maneira. É preciso aprender a funcionar com a frustração.
João Ventura: No Recurso há um encaminhamento para o trabalho coletivo. Mas não sei se faz muito sentido, como trabalho final, sermos obrigados a trabalhar em grupo. Gostava que se criassem outras possibilidades.
Mário Negrão: Sou um gajo sem plano a andar na corda bamba. No dia em que se definiram os grupos eu fiquei sozinho. E acabei por aceitar isso. Mas interfiro nos projetos dos meus colegas, é uma coisa que depende da permeabilidade deles. E estou a desenvolver o projeto de um filme a solo. Filmei muita coisa aqui, exercícios, ensaios, entrevistas. Quero trabalhar essas imagens (e outras) forçando diálogos entre imagens que não têm nada a ver umas com as outras. Não quero saber quem faz o filme. É uma produção coletiva de um solitário.
JMVM: E por fim, há a apresentação. Um projeto que tens de apresentar quase a nível profissional, numa sala, com público.
CP: Durante 6 meses és completamente injetado com a teoria e a prática de outros criadores e pensadores e andas às aranhas para te tentares encontrar ou redirecionar. E a apresentação final é a oportunidade de pôr à prova o que assimilaste, o que rejeitaste. Sem isso seria incompleto enquanto formação para criadores, seria repetir uma fórmula.
JMVM: O salto do saber qual é o espetáculo que querem fazer para o fazer mesmo é que é – e eles ainda passaram pouco por isso.
CP: Neste momento estão todos em modo Recurso: a questionarem tudo.
JMVM: Mas vocês não se identificam com isso?
JN: Claro, os nossos processos são assim!
CP: É suposto ser assim, a menos que não penses sobre o que estás a fazer. As palavras forram paredes entre o pátio e a sala de entrada, onde Joana Magalhães, João Ventura, Mafalda Lencastre, Sofia Santos Silva, Susana Paixão dão corpo a “There’s something about the air”, narrativa não linear em que pequenas ficções se encarregam da destruição dos códigos de espaço e tempo, num jogo em que a peça central é um cubo em construção. À noite, de joelhos no linóleo branco, a Susana, o João e a Mafalda hão de continuar a construir, tira a tira, a cortina mágica do dispositivo de cena.
João Ventura: Mas então, o que é que nos unia verdadeiramente nisto?
Mafalda Lencastre: O nó inicial, a questão do coletivo é essa, o que queremos trabalhar em comum. Uniu-nos o facto de sermos muito concretos, de pormos a ênfase na construção. E chegámos a esta coisa do ato de resistência ao fim da ficção.
Sofia Santos Silva: Criou-se uma linguagem comum em termos de pensamento.
Susana Paixão: Este é um coletivo improvável, mas que funciona. E quando tens um coletivo não precisas de ir lá fora à procura de outros pontos de vista.

Na black box, avançam-se e retiram-se possibilidades técnicas, propostas de vídeo e banda sonora, fazem-se contas ao orçamento para forrar o chão a esferovite (cada participante tem um orçamento de 300€ que tem de gerir, em negociação) para a “manifesta.”, a criação coletiva de Emanuel Santos, Joana Mont’Alverne, Mafalda Banquart, Tiago Araújo e Tiago Jácome.

Mário Negrão disponibiliza a sua experiência na matéria: Posso oferecer ajuda, se ela for necessária.
Emanuel Santos: Mas interessa-te?...A ti, ajuda-te?
Este “lugar do outro” volta à conversa mais tarde, à mesa de jantar, entre sopas e pratinhos do dia de um snack-bar concorrido e em conta.
Mafalda Banquart: Uma das coisas importantes neste Recurso é reconhecermos que a nossa posição é móvel. Descobres coisas todos os dias e uma pode ser estrutural e modificar todo o pensamento que estavas a desenvolver até ali.
Tiago Araújo: A “manifesta.” que estamos a criar é oscilante, é móvel, opera dentro de limites, é frágil, é problemática porque, acho eu, nós somos assim. Nós tornámo-nos assim, como indivíduos e como elementos deste grupo. Porque isto tem tudo a ver com o que fizemos neste curso, com a forma como olhamos para o outro e para o mundo.
Mafalda Banquart: Falamos muitas vezes de o nosso espetáculo ser um safe space para as coisas fracas, não produtivas, não eficazes, inúteis. E incompleto. Estamos num estado de alerta permanente.
Tiago Araújo: Sempre a ver se não estamos a trabalhar com narrativas que não são as nossas, se estamos a pisar o espaço do outro. E a partir do momento em que nos tornamos atentos a isso, o nosso trabalho é sensível a isso também. Ter seminários e laboratórios com pessoas que têm esta forma de trabalho e esta ética de criação faz-nos ter consciência disso. Para podermos chegar agora a isto: olhar todos os dias para o trabalho em oscilação.
Tiago Jácome: Significa mesmo privilegiar o processo, porque queremos abrir espaço para a falha, mas não queremos que ela seja uma forma de nos demitirmos de um posicionamento. Ao mesmo tempo que assumimos que é problemático, estamos sempre a querer procurar soluções. Porque se dizes que queres abrir espaço para uma coisa, mas a fechas em paredes inamovíveis, estás a contradizer-te.
Joana Mont’Alverne: Aqui discutimos muito, discutimos tudo. E para mim, estar neste grupo, é perceber várias perspetivas e achar que todas elas são possíveis. Que podem coabitar, podem existir juntas. Este curso baralhou-me, mas organizou-me.

Acabar para começar

CP: O importante é que o Recurso seja uma coisa que os tenha feito crescer a eles, e a nós também, tanto como formadores como como criadores. Para mim o grande interesse do Recurso é desenvolver mais pensamento crítico nas artes performativas. As pessoas tomarem consciência do sítio em que habitam, onde estão. Questionarem-se e questionarem-nos.
JMVM: E associando esse pensamento a uma questão ética. Dizer: eu faço isto porque é assim, corresponde a uma posição ética de aceitação do status quo. Não aceitar essa maneira de fazer as coisas significa questioná-la, repensá-la, fazer de outro modo.
CP: E essa posição ser sempre oscilante, porque tens sempre que estar a medir as coisas, tens que estar sempre a reposicionar-te, todos os dias.
JMVM: Passámos muito a ideia de não ser garantido. Mesmo quando tu sabes, ou pensas que sabes, não é garantido. Tens que pensar como é que o outro vai ver - e que o outro são muitas pessoas que não consegues controlar.
JN: E não separar ética da estética. O normal é separá-las. Ou até esquecer completamente a ética.
CP: Ora a forma é o conteúdo, o conteúdo é a forma.
JN: E o conteúdo não tem de ser um texto com personagens
CP: O que é que é teatro? Tem de ter sempre palavra porquê? A arte tem de ser livre!
JMVM: E a formação teórica também aconteceu para se perceber de onde é que isso vem, nos cursos de teatro, qual a linha programática. Não é para forçosamente rejeitares isso, é para perceberes que se escolhes esse caminho escolhes uma história que tem um passado e uma lógica.

Recursar* é um verbo transitivo que no presente e na primeira pessoa se diz recurso. Significa examinar de novo, examinar maduramente. Se houver maneira de resumir uma experiência intensa a palavras que não a enfraqueçam, passa por aqui.
Tiago Jácome: Quis fazer o Recurso para ganhar ferramentas para dar forma ao que quero dizer. E foi muito importante perceber que não há metodologia e léxico melhor do que descobrires os teus próprios métodos e léxico a pensar em coletivo, a descobrires quem são os teus pares. Não está a ser fácil, mas é o que queremos.
João Ventura: Trabalho numa lógica performativa e autobiográfica e a minha forma de construir está muito ligada à práxis de cena. Há um lado intuitivo que me interessa muito. E quando me pedem para me sentar a uma mesa é... Difícil. Não estou farto de pensar, mas estou farto que tudo tenha de ter justificação. Aqui comecei a dar a volta ao que queria fazer - que nos últimos tempos era falar de morte. E comecei a pensar que se calhar interessa-me falar de vida.
Mário Negrão: Levo daqui ferramentas para desbloquear bloqueios criativos e centenas de referências. Por exemplo? Que o plágio nas artes é uma ferramenta. Que uma lista telefónica pode dar um guião para uma peça. Que no limite nem é preciso guião. Sobretudo aprendi a desafiar e suspeitar de todas as ideias e a aprofundar cada um dos conceitos que usamos. Vou levar isto comigo, seja em teatro, em fotografia ou em vídeo.
Susana Paixão: O Recurso aproximou-me dos criadores que estão a quebrar a relação convencional com o público - mesmo quando o fazem em palcos convencionais. Acho que, com este processo, fiz as pazes com o teatro. E confirmei a capacidade de a cenografia ser uma personagem tão relevante quanto os atores. Acho que também é importante, em momentos destes, continuares com as questões que trazes.
Tiago Araújo: Para mim há um compromisso com uma nova forma de olhar, em que as inquietações éticas são o motor primário de pensamento, algo que está antes de tudo. Um olhar eticamente preocupado que é uma predisposição que não tem fim, é um despoletador de inquietações.
Mafalda Banquart: Entrei no Recurso como experiência solitária, mas entendo que rodearmo-nos de pares faz parte dessa experiência. Percebi que nos podemos rodear de pares e que eles nos complementam nesse gesto do pensamento que depois se transforma.
Joana Magalhães: Isto alterou-me a visão, eu tinha muitas certezas. Porque a questão é essa: como te relacionas, ética e artisticamente, com o que estás a fazer. Este curso obriga-te a posicionares-te, a tentar perceber qual é o teu caminho, para onde queres ir. Aqui não estás na repetição de fórmulas a que estamos habituadas e que sabemos fazer bem, estás no que está a acontecer agora, e isso leva-te para o futuro.
Emanuel Santos: Eu sabia que não ia fazer nada parecido com algo que já tivesse feito. Vamos ter de fazer este espetáculo. Mas as cenas que vão acontecer no palco parecem-me uma consequência de tudo o que fizemos aqui, das conversas e das partilhas e discussões que tivemos até aqui, uma coisa orgânica e não um espetáculo programado. Às vezes temos muitas certezas e basta um de nós questionar uma coisa para pormos tudo em questão. E não me apetece desistir, mas ficar no problema. Não evitar o conflito, as coisas difíceis, mas abraçá-las, porque não é da solução que estamos à procura.

Construção de Maria João Guardão, a partir de conversas em 22 e 23 de agosto de 2018, no Porto.