Vamos a Recurso
Cátia Pinheiro & José Nunes
“ALL THINGS ARE DELICATELY INTERCONNECTED”
Jenny Holzer
Genealogia de uma colaboração
Lembrança 1 – Laboratório de Criação e Interpretação Uma Gaivota, outubro de 2015
Participantes deste laboratório dizem-nos que faltam mais espaços de partilha como aquele que estávamos ali a criar e que a sua formação em Teatro era muito orientada para a interpretação e, por isso, não tinham ferramentas de criação. Este foi o gatilho para começarmos a pensar que talvez fizesse sentido criar um espaço de partilha de conhecimento.
Lembrança 2 – algures em 2016
Em conversa com o José Maria Vieira Mendes especulámos sobre o que poderia ser um programa de formação em torno da teoria e criação teatral e decidimos fazer um laboratório conjunto, partindo de temas que estávamos a explorar nos nossos trabalhos, cruzando teoria, estudos teatrais e criação. Esse laboratório seria um tubo de ensaio do que poderia vir a ser um programa de formação um pouco maior.
Lembrança 3 – Rua do Almada, verão de 2016
Numa noite, à porta do espaço da mala voadora, no Porto, em conversa com a Vânia Rodrigues confidenciámos-lhe o que andávamos a “conspirar” com o José Maria Vieira Mendes. A partir dessa conversa abriu-se um espaço para começar a desenvolver de forma mais palpável esta ideia que andava a pairar na nossa cabeça desde 2015.
Entre estas lembranças e o momento em que escrevemos este texto já se passaram duas edições do Recurso, uma em 2018 e outra em 2021. Pareceu-nos importante colocá-las aqui antes do texto que se segue.
De onde nasce o Recurso?
Cumprida a 2ª edição do Recurso e após um tempo de análise, avaliação e reflexão, pareceu-nos natural que a nossa contribuição para esta Publicação Online fosse uma retrospetiva do ponto de onde partimos, quando o Recurso era apenas uma ideia vaga a pairar nas nossas cabeças, até este momento em que nos encontramos – o rescaldo da 2ª edição, o desenvolvimento de um projeto intermédio chamado Recurso(s) e a projeção de uma 3ª edição (pronto, está feita a revelação… haverá uma 3ª edição do Recurso!). Esta retrospetiva não pretende ser apenas uma narração ou documentação dos eventos, processos e procedimentos que nos fizeram chegar até aqui, mas sim uma retrospetiva reflexiva sobre o porquê de nos termos lançado a fazer este projeto.
Para começar, importa dizer que este projeto surgiu como uma extensão do nosso trabalho de criação e não como uma atividade complementar. Não foi de um dia para o outro que nos lembrámos “olha, vamos ser formadores!”. O Recurso é o resultado do diagnóstico que fizemos ao contexto em que estávamos a operar e simultaneamente a criação de uma oportunidade para pensar sobre o que andávamos a fazer. É por isso que toda a conceção do Recurso assenta nas mesmas premissas artísticas que qualquer outra criação da Estrutura, desde o primeiro brainstorming até ao início da atividade. Aliás, é um projeto demasiado apetecível para não fazermos isso, uma vez que é um espaço propício para refletir, pensar e questionar.
Desenvolver um projeto como o Recurso é, no fundo, ir à génese da Estrutura. Em 2009, fundámos a Estrutura e o nome que escolhemos não era inocente. Sim, andávamos imersos nos filósofos estruturalistas e pós-estruturalistas e sim, servimo-nos da tautologia para gerar uma certa confusão da estrutura/Estrutura que ainda hoje nos diverte. Mas este nome não era apenas uma brincadeira ou uma homenagem aos estruturalistas. Interessava-nos utilizar a tautologia para pensar o que é/pode ser uma estrutura. Interessava-nos ser a Estrutura e não “Teatro Qualquer Coisa”. Não nos interessava a ideia “arcaica” de criar uma companhia de teatro, mas sim a criação de um espaço que nos podia servir não apenas a nós, mas também a outrxs criadorxs. Que podia servir para a criação de objetos artísticos teatrais, mas também de outros territórios artísticos. Que podia servir para fazer atividades de programação ou formação. No fundo, queríamos criar um espaço onde a partilha fosse a base que solidificava os pilares estruturais deste projeto (pun intended). Apesar de sentirmos que o termo companhia de teatro é insuficiente para nos definir, a passagem do tempo fez com que nos deixássemos capturar e acabássemos por deixar esvanecer esta resistência a essa nomenclatura. Por um lado, simplificava a comunicação (já bastava o nome Estrutura para baralhar). Por outro, começámos a questionar porque recusávamos esse conceito em vez de o tentarmos redefinir e expandir o seu espectro de significados. Porque não fazíamos o mesmo que fazíamos com os nossos espetáculos quando nos acusavam de que aquilo que fazíamos não era teatro? Usar o termo companhia de teatro passou, de certa forma, a ser um statement. “Quanto mais nos dizem que não fazemos teatro, mais nós dizemos que fazemos”. Foi também por isto que cedemos ao termo e hoje quando nos perguntam na creche da nossa filha o que é que fazemos, dizemos “temos uma companhia de teatro” e não é apenas para facilitar a comunicação.
A noção de partilha que está na génese da Estrutura é a mesma que está na criação do Recurso. A ideia de que todxs temos a ganhar quando se criam espaços de diálogo, partilha e reflexão. Mais do que “professores” e “alunos” gera-se um espaço onde alguém partilha conhecimento e experiência com outrem, numa “troca” que não é totalmente estanque e unidirecional.
Não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti
Foi numa lógica de subversão desta expressão que imaginámos o Recurso. Gostávamos de fazer pelos outros aquilo que sentíamos que ninguém tinha feito por nós. A nossa “formação” como criadorxs, tal como a maior parte dxs criadorxs que conhecemos, aconteceu em forma de manta de retalhos, resultando da nossa formação de atores, da nossa experiência a “trabalhar para outros”, de formações avulsas que fazíamos com outrxs criadorxs, de bibliografia que líamos e de espetáculos que víamos.
Já referimos acima que, quando orientámos alguns laboratórios de criação na cidade do Porto, foi evidente que havia um espaço alternativo de formação que tinha de ser criado. Nestes laboratórios, xs participantes diagnosticavam lacunas ao nível da experimentação e da teoria, tanto no percurso de formação como na transição para uma profissionalização. Por um lado, sentiam que a sua formação era muito vocacionada para a interpretação, sentindo por isso necessidade de uma formação complementar que lhes permitisse desenvolver ferramentas de criação, por outro lado, consideravam que o seu background de estudos teatrais assentava essencialmente no estudo da literatura dramática e numa historiografia teatral que nem sempre dialogava com a contemporaneidade.
Foi neste contexto que surgiu a vontade de desenvolver um programa avançado de teoria e criação teatral aberto à reflexão e à experimentação, que propusesse uma alternativa à formação teatral mais convencional e que, de algum modo, colmatasse um espaço de transição entre a formação e a profissionalização.
Apesar de não ser um espaço onde se repetem lógicas de ensino que já existem nas escolas de artes performativas, o Recurso nunca se quis assumir como um espaço “anti-academia” ou “anti-ensino formal”, mas sim uma outra coisa – um espaço paralelo onde se pensam outras possibilidades de partilha de conhecimento. Obviamente, não nos vamos fazer de sonsos e dizer que alguns dos erros que identificámos na academia não serviram de combustível para esta nossa reação chamada Recurso e para nos lançarmos à conversa com os nossos parceiros.
Também é importante dizer que, apesar de acharmos que o Recurso não se inscreve em nenhum tipo de formação pré-existente, procurámos sempre não ignorar e extrair conhecimento de outros espaços alternativos de formação e experimentação que haviam sido desenvolvidos antes do Recurso, como os Cursos de Encenação da Fundação Calouste Gulbenkian, os diversos programas de formação do Fórum Dança ou o programa Mugatxoan da Fundação Serralves.
“Não existe nada mais prático do que uma boa teoria” (Kurt Lewin)
Para o desenvolvimento destas duas edições procurámos parceiros e interlocutores que partilhavam uma visão em relação às práticas teatrais próxima da investigação e cuja praxis colocasse persistentemente em causa a própria definição de “teatro”. Prosseguindo uma lógica de questionamento inerente à nossa forma de fazer espetáculos, o Recurso assenta no pressuposto de que os vários constituintes de um espetáculo de teatro podem ser reinventados, não se inscrevendo num qualquer âmbito encerrado de possibilidades, e podem ser livremente combinados, não tendo de obedecer a uma hierarquia pré-determinada. Teoria e prática são aqui entendidas como vertentes de uma mesma atividade de especulação em torno da possibilidade de teatro. Com isto procurámos destruir dicotomias entre teoria e prática, criação e produção, teatro e outras artes. Inspirados por algumas ideias da “escola livre” de Joseph Beuys, sempre imaginámos o Recurso como algo que fomenta a capacidade transformativa das artes e como algo que se questiona a si próprio, abrindo espaço à participação e fugindo a fórmulas. Nesse sentido, era também importante que o painel de formadorxs fizesse um paralelismo com a nossa “formação” enquanto criadorxs – em que íamos buscar referências fora do campo teatral – e, por isso, pareceu-nos evidente que este painel deveria promover essa heterogeneidade com a inclusão de formadorxs mais ligados à Dança, à Performance ou às Artes Visuais, expandindo as possibilidades do que pode ser um “programa de formação teatral”. No painel destas duas edições, existia um conjunto diversificado de formadorxs com backgrounds e experiências distintas e formas diferenciadas de lidar com a ideia de “investigação” ou “reflexão”. Neste particular, sempre nos interessou que o Recurso levantasse questões sobre o papel que os artistas podem ter enquanto formadorxs: O que é isto de colocarmos artistas a dar formação? O que é que xs artistas conseguem partilhar que um/a/x docente da academia não consegue? Ser artista ensina-se? Mais do que encontrar respostas, o que nos interessa é levantar estas questões, porque ter um conjunto de artistas a orientar este programa de formação é também problematizar o ensino e pensar em modelos de aprendizagem.
Todxs vamos a Recurso
No texto da Mafalda Banquart, nesta publicação, fala-se das mais-valias do Recurso para quem nele participou. Neste sentido, parece-nos importante dizer que todxs vamos a Recurso. Falamos em nome próprio, mas também através do feedback que fomos recebendo de outrxs formadorxs. Este é um espaço que “obriga” a sistematizar ideias, metodologias, processos. Que nos faz olhar para diferentes criações como um todo. Que ajuda a fundamentar um discurso, uma autoreflexão e também uma autocrítica em relação ao nosso trabalho. Uma epistemologia da criação artística teatral que não está – nem pode estar – dependente do conhecimento gerado na investigação, na academia ou na crítica, porque ela resulta única e exclusivamente da prática (à falta de melhor termo) e do que se vê para lá da apresentação pública de um objeto artístico, que é apenas a ponta do iceberg de todo um processo para se chegar até ali. O desafio lançado a quem orientou os laboratórios do Recurso era partilhar metodologias, modos de fazer, interrogações, questionamentos e ideias embrionárias de projetos. Neste contexto de formação, sempre nos pareceu que a partilha de pontos de partida seria muito mais produtiva que a partilha de pontos de chegada, pois o resultado final de um espetáculo esconde muita coisa. Há um percurso dos processos criativos que não está no espetáculo nem na informação partilhada com o público (folha de sala, documentação, entrevistas, etc.) e é dificilmente partilhável a não ser que seja num contexto como este, em que se mostram os projetos em forma de “embrião”, onde se revelam os pontos de partida que levaram à criação de espetáculos ou ferramentas que contribuem para a operacionalização de uma ideia em espetáculo. Em suma, a tal parte do iceberg que fica por baixo do que é partilhado com o público.
E agora?
Não gostamos de receitas nem de fórmulas pré-estabelecidas, por isso é que o Recurso 2021 era diferente da edição de 2018 e o próximo será seguramente diferente dos outros dois. Não faz sentido manter um projeto destes de forma acrítica. É preciso questionar, repensar e olhar para o formato do Recurso e para os resultados alcançados, bem como para a sua relação com o panorama das artes performativas locais, nacionais e internacionais.
Assim achamos que foi o Recurso até aqui – um espaço em aberto, onde damos o corpo às balas, onde nos expomos, onde partilhamos e esperamos que outrxs o façam também – e será a partir desta base que se construirá o seu futuro. Sempre a (re)pensá-lo e (re)construí-lo, pois só assim é que faz sentido.
Não é uma escola. Não é um curso. É um Recurso.