Mariana Duarte

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Um espaço de liberdade onde acontecem coisas

“Embora na linguagem comum por vezes se confunda ou identifique a actividade cultural com um tipo de trabalho exclusivamente intelectual ou artístico, o certo é que esta significação se afigura indiscutivelmente restritiva. O domínio da cultura, com efeito, ultrapassa largamente o sector da teorização e da obra de arte para abarcar um campo muito mais vasto no qual se alicerçam mitos, crenças, valores, entrelaçados numa constelação ordenada através de estruturações diversificadas, consoante a sociedade.” – Maria Carmelita Homem  de Sousa, “O Sim e o Não. Fragmentos para uma Teoria da Alienação” (1979)

 

Recurso, segundo round. Passados três anos, continua actual o diagnóstico que levou José Nunes e Cátia Pinheiro, da Estrutura, a desenharem este programa de formação em teoria e criação teatral. “A maioria das escolas de teatro são muito focadas na interpretação e numa ideia de teatro que não é aberta à contaminação entre áreas, o que é um bocado obsoleto”, introduz José Nunes. “Além disso, a teoria e o pensamento são, normalmente, os side jobs.”

Contudo, e sem esconder as reservas perante o modus operandi da academia, o objectivo não é criar “um espaço rival” às escolas de teatro, mas sim propor uma formação complementar, menos dada a convenções e pressões, a hierarquias rígidas e sentidos unívocos. Para isso, o Recurso teve também de se olhar ao espelho. E regenerar. “Depois da primeira edição fizemos um questionário às pessoas que participaram, de forma a perceber o que podia ser melhorado”, diz José Nunes. “E as nossas vontades também vão mudando ao longo do tempo”. 

Nesta segunda edição – mais curta e condensada do que em 2018, arquitectada em colaboração com José Maria Vieira Mendes e Vânia Rodrigues, e com lugar no CAMPUS Paulo Cunha e Silva – a intersecção da prática teatral com a performance, as artes visuais e o pensamento crítico esteve mais evidente. Com um elenco de luxo no painel de formadorxs que orientou os laboratórios (entre elxs, Pedro Penim, Melissa Rodrigues, Rogério Nuno Costa, Dori Nigro, André e. Teodósio, Sónia Baptista, Paula Sá Nogueira, Tânia Dinis), o Recurso 2021 procurou ser eco e fazer eco de inquietações com raízes e passados profundos, mas que vão ganhando cada mais tracção no presente, inclusive no meio artístico: do ecofeminismo à teoria queer, do racismo ao colonialismo, da ecologia ao feminismo interseccional. “O desafio feito ao conjunto de formadorxs foi o de partilhar metodologias, mas também interesses, formas de ver, éticas de trabalho, éticas de abordagem a determinados assuntos que são caros a todas as pessoas do grupo”, nota José Nunes. “Entre estas dez pessoas há quatro mulheres e, de resto, só uma pessoa é que se identifica como um homem cis.”

A diversidade de identidades de género dentro do grupo é acompanhada por uma pluralidade de backgrounds artísticos. Por ordem alfabética: Carolina Garfo é formada em Escultura e trabalha sobretudo com cerâmica; Eduardo Batata licenciou-se em Pintura, tirou um mestrado em Artes Performativas e entrelaça a performance com a investigação queer; o colectivo Jangal, composto por David Almeida, Diogo Sottomayor, Inês Costa e Jonas Rocha, germinou na licenciatura em Teatro da Universidade do Minho; Maria Teresa Barbosa formou-se em Teatro, é criadora e intérprete; Miguel Amorim vem de Letras, fez um desvio para o teatro e é, desde 2020, presidente do Teatro Universitário do Porto (TUP); Natacha Bulha Costa andas às voltas com o teatro desde a pré-adolescência, na criação, na interpretação, na produção e na arte-educação, com paragens noutros sítios pelo meio; Orlando Gilberto-Castro é arquitecto com queda para a performance e para a instalação, com uma década de experiência no TUP. Há quem já tivesse referências do curso através de pares, outrxs vieram “de olhos tapados”. 

Pedro Penim, um dos formadorxs repetentes do Recurso, nota que essa diversidade de proveniências não é, necessariamente, sinónimo de diferenças significativas em relação ao grupo da primeira edição, ligado mais directamente ao teatro. “Muitas pessoas do teatro já têm uma quantidade de referências e uma visão do que é a sua actividade muito mais amplas, abertas e plurais, por isso não senti diferenças na capacidade de olhar com sentido crítico“, diz. “Quanto muito, neste grupo senti, pelo facto de conhecerem pior aquilo que é a actividade teatral, que havia mais ingenuidade na relação com o teatro. E isto não é minimamente valorativo: é uma diferença no conhecimento de como a actividade se organiza e de como as instituições se organizam.”

Já José Nunes considera que essa “diversidade de áreas” vai ao encontro de uma das “ideias basilares” do Recurso, e por isso mesmo procuraram abrir “ainda mais o espectro” na open-call para a segunda edição. “O objectivo é dar uma visão abrangente daquilo que é o teatro. Especular sobre o que é o teatro.”

E o que pode ser o teatro? Depois destes três meses, a pergunta – lançada entre o frémito do pré, do durante e do pós das mostras finais – dá direito a risos nervosos, a breves momentos de pânico, a vários “isso agora…” driblados com “ui! ai!”, a longos minutos de dúvidas existenciais, à reformulação de pensamentos em voz alta.

Natacha: Não sei responder a isso.

Miguel: Ai!… Neste momento está tudo assim um slime…

Carolina: Ui!… Eu estou fora disto tudo…

Mas as respostas acabam por chegar. Com vistas largas e vários pontos em uníssono.

Natacha: É a representação criativa de algo que se quer dizer.

Miguel: É algo que acontece e é visto. Neste momento, estou por aqui porque as possibilidades são demasiadas. 

Carolina: Prefiro falar em performance. A performance é o lugar onde tudo é possível.

A Diogo: Como disse um dos nossxs formadorxs, o Rogério Nuno Costa, qualquer coisa que eu faça será sempre enquanto teatro, mesmo que seja uma misturada de coisas. Este projecto [filme-performance “23.30”] é cinema enquanto teatro, um dia irei fazer uma exposição enquanto teatro… Acho importante o statement. No caso do Jangal, a nossa formação é em teatro e não temos vergonha nenhuma de o dizer. 

Lição bem aprendida.

José Nunes: Para mim, o teatro significa imensas possibilidades. Se formos ver a definição – e normalmente as pessoas mais conservadoras gostam muito de ir à etimologia e à ontologia -, para os gregos teatro significava “sítio de ver”. Isso carrega em si múltiplas possibilidades. Não tem de ter um texto, não tem sequer de ter actores nem encenação. É um espaço de liberdade onde acontecem coisas e experiências.

Esta última frase talvez seja a descrição mais fiel daquilo que vimos nas mostras finais. Liberdade enquanto imprevisto, improviso e erro; liberdade enquanto direito à fragilidade e à vulnerabilidade; liberdade enquanto exercício das certezas e das incertezas; liberdade para não esconder referências que vão beber ao trabalho dxs formadorxs, mas também ao de jovens artistas portuguesxs (de Jorge Jácome a Odete, por exemplo); liberdade muito it’s my party and I’ll do what I want, mas sem as ego trips e o excesso de confiança que, infelizmente e insuportavelmente, transborda na comunidade artística com currículos já validados.

E liberdade nos formatos das criações. Uma instalação performática, alquimia terrestre e cibernética em que o barro faz as vezes do corpo e em que as personagens, a existirem, são uma colecção de pássaros despassarados (Predição Despassarada, de Carolina Garfo); um proto-espectáculo/stand-up/série-televisiva-Millennial-Gen-Z sobre a imposição da felicidade nas sociedades contemporâneas, corajoso em como desbrava as contracurvas, tão violentas quanto hilariantes, da depressão (Happy Hour, de Natasha Bulha Costa); uma instalação performativa que usa as janelas dos estúdios e o espaço público do CAMPUS para narrar e ficcionar uma experiência colectiva (Em Vidro, de Orlando Gilberto-Castro); ou uma performance-ritual com activações textuais, sonoras e escultóricas que cruza a história obliterada – mas nunca enterrada – de corpos queer ancestrais com passados pessoais (Devolver o Fogo, de Eduardo Batata). 

Em resumo, a liberdade como safe space (e mais uns quantos recados à academia, sem esquecer as instituições culturais). 

A Diogo: Quando sais da universidade, tu ficas muito neste espaço do “o que é que o professor quer?” Por muito que queiras ser livre, há uma espécie de ditadura invisível de  quereres fazer bem, ou aquilo que é percepcionado como “o bem”. Acho que nós as quatro sempre tivemos esta vontade de fazer algo que nos represente e, com este trabalho, pomos à prova essa ditadura invisível. Experimentamos uma coisa nova, sem medo. O Recurso deu-nos um safe space e condições para tal.

Natacha: O problema dxs criadorxs emergentes é o medo de falhar e de arriscar que nos impõem e que, muitas vezes, nos paralisa. A academia ensina-nos a ir a castings, a querer trabalhar com determinado encenador e diz-nos que o auge do nosso percurso é estar num teatro nacional. Há muito pessimismo à volta dxs novxs criadorxs e este também é alimentado pela academia, que diz que nós temos de servir determinado padrão. Que é válido, mas que não me interessa. É limitador. Eu sei o quão valioso, único e especial é o Recurso em Portugal. Não há uma formação que reúna este conjunto de formadorxs, com linguagens que espelham o que eu gosto de ver e que nos façam ter confiança no caminho que queremos seguir, mas sem nos levarem ao colo. Ah, e também ficas a perceber o que não queres. 

Miguel: O espaço para experimentar existe, mas é muito limitado e dependente da questão institucional. Das instituições onde se inserem os apoios, dos espaços disponíveis. É sempre aquele mixed feeling: ou pegas nas coisas e fazes tu com os meios que tens à tua disposição, ou então tens de te adaptar a determinada instituição. Mas acho que há mudanças a acontecer, aos poucos. O CAMPUS é a prova disso; é um espaço que a cidade já precisava há muito tempo. Mas enfim, claro que o sector é muito precário. Para jovens artistas ainda mais – vai ter sempre ao segundo emprego. 

Carolina: Ninguém era obrigado a apresentar nas mostras finais. Eu fui a primeira pessoa a dizer que não ia fazer nada, que não me ia expor… Mas fiz. Uma coisa importante que aconteceu aqui foi fazer alguma coisa que te deixa desconfortável, mas em bom. 

Neste desconforto confortável, há dois eixos que elxs consideram incontornáveis: o papel dxs formadorxs e o sentido de comunidade. O estar junto mesmo em tempos de pandemia, mesmo quando há tensões e fricções, mesmo quando a pressão aperta mas há sempre ali um ombro amigo. Altos e baixos de um trajecto colectivo documentado na exposição/instalação de Maria Teresa Barbosa; a importância da partilha plasmada no trabalho de Orlando Gilberto-Castro, cujos textos foram criados a partir dos contributos dxs colegas, que por sua vez reflectem as suas experiências daqueles três meses.

Eduardo: Eu tenho um grande problema com a academia, que é o facto de quem está a dar formação não estar, na sua maioria, a desenvolver trabalho artístico. Com o Recurso tens contacto com várixs criadorxs, de agora, a falarem contigo sobre as suas práticas artísticas. É um contexto que me interessa e que não separa a teoria da prática; ambas fazem o pensamento.

A Diogo: O facto de estarmos em contacto com mais de vinte formadorxs, de áreas distintas e que valorizam tanto a prática como a teoria, acabou por ser muito profícuo para nós e cada uma e cada um pode encontrar na formação o que mais lhe convém. E com outra disponibilidade, já que não há a pressão de se estar a ser avaliada. É um espaço seguro onde podemos discutir projectos com outras pessoas e ter feedback delas, onde podemos expor e experimentar coisas novas. 

 

Orlando: A parte mais surpreendente foi mesmo esta questão colectiva. Nos laboratórios fiquei a conhecer o trabalho de muita gente que não conhecia, tive uma multiplicidade de inputs, e isso pôs-me em lugares onde eu nunca tinha estado. Mas também foi muito enriquecedor fazer este processo com estas dez pessoas. Aprendi muito com o grupo e com a forma como o grupo geriu as posições em que fomos sendo postxs ao longo destes três meses. Acho que o mais relevante é o aprender a estar e a pensar com pessoas diferentes e a perceber como se torna isso parte de um trabalho que é inevitavelmente pessoal. Perceber como se gere essa contaminação é a coisa mais importante que tiro daqui.

 

Natacha: À excepção do Jangal, todos os projectos são individuais. Mas durante os processos criativos estivemos a nutrir-nxs e contaminar-nxs mutuamente. Encontrar pessoas com quem tens afinidades artísticas é muito importante, mesmo que possa haver tensões de vez em quando. Este sentimento de pertença é um boost de criatividade e dá-te mais certezas do que queres fazer.

 

Enquanto director artístico de um teatro nacional, todos os problemas diagnosticados e apontados acima pelo grupo preocupam Pedro Penim. “Como director artístico do D. Maria II, estou empenhado em criar momentos, actividades e programas que, de alguma forma, potenciem essa relação com a criação desligada da apresentação, ou pelo menos sem a pressão da apresentação. Creio que há espaço para isso, até porque começam a aparecer mais lugares de residências”, observa. “Julgo que esse processo de reflexão é muito importante para uma criação mais fundamentada e, muitas vezes, as instituições apressam xs artistas a apresentarem coisas sem se preocuparem com o tempo de maturação dos processos.” 

 

No que diz respeito à academia, e a professorxs que aparentemente estão paradxs no tempo, Pedro Penim sublinha que as escolas “têm a responsabilidade de pôr xs alunxs em ligação com xs artistas” que estão a trabalhar aqui e agora.  “A ideia de ter professorxs especializadxs continua a fazer sentido, professorxs de profissão, mas é muito urgente para xs artistas terem um contacto directo com encenadorxs, coreógrafxs, pensadorxs. Algumas escolas já estão a fazer essa ponte, mas para outras o processo é mais lento”, considera. “Há algumas diferenças entre Lisboa e Porto, mas percebo que as expectativas dxs alunxs sejam sempre mais altas do que aquilo que a escola pode oferecer. Há essa crise existencial do ensino artístico, mas ela vai melhorando.”

Para Dori Nigro, criador, arte-educador e formador neste Recurso, “a educação formal continuará reproduzindo modelos autoritários enquanto não reconhecer as suas falhas”. Sublinha que “investir em outros espaços de educação não-formal com poeticidade e criticidade, dentro e fora do académico, é de extrema pertinência tanto para uma formação humana holística como para a criação da conscientização de que fala Paulo Freire e que busca, através de micro/macro pedagogias, criar consciência crítica e transformações do/no mundo que vivemos/fazemos.” No Recurso, Dori diz que conheceu jovens artistas que não têm receio de lançar perguntas que desestabilizam tanto seus fazeres como também os fazeres do mundo

No nosso laboratório trabalhámos o auto/alter cuidado como prática artística porque compreendemos ser um desafio às relações humanas e que, portanto, não deve estar separado do fazer artístico. Vi, nas apresentações finais, trabalhos em processo que elaboram e questionam o mundo, as identidades e os afectos.” Também por isso, o criador brasileiro, residente no Porto, diz acreditar e rever-se numa geração mais jovem de artistas, preocupada em saber quais os seus lugares de fala e de cala, quais os seus lugares de aliança (e vale a pena referir que, neste grupo, todxs elxs são brancxs). “Quando apre(e)ndo a conscientização que trazem, apercebo-me que quando era mais jovem, num passado recente, não tinha esta mesma criticidade do mundo, ainda menos de mim. Não reconhecia a minha identidade”, partilha Dori Nigro. “Vejo hoje, em jovens criadorxs, a consciência crítica que têm de si, dxs outrxs como parte de si, e do mundo. O meu optimismo crítico faz-me acreditar neste movimento e ver esperanças, mudanças e/afectivas, quebras de paradigmas e problematizações de passados, presentes, futuros.”

 

A novidade: o módulo de produção. “Desfazer as tensões que existem entre criação e produção”. Ah: e a precariedade. “Está muito presente nas nossas cabeças”.

“One of the most impressive threads running through the chapters is the book’s dissection of cognitive, affective, and creative labor under the apparently contradictory conditions of self-empowerment and precariousness. Self-exploitation emerges as the dire consequence, the de facto contemporary manifestation of Adorno’s dictum that every work of art is always both ‘autonomous and fait social’.” – Thomas Elsaesser num artigo para a Art Forum sobre o livro “Cultural Revolution”, de Sven Lütticken

 

Não é uma novidade a 100%, mas quase. Em 2018 houve dois laboratórios de produção, um orientado por Vânia Rodrigues, outro por José Nunes. Mas nesta edição o tema – e o imbróglio atrelado a ele – ganhou um lugar de destaque, a par dos blocos sobre Teoria e Criação. “Falar disto é uma necessidade”, diz José Nunes, peremptoriamente. “Na primeira edição havia imensas perguntas, as pessoas estavam sedentas, e tivemos feedback sobre isso no questionário. Para mim é mesmo importante que se pense a produção desde o momento inicial de um processo criativo, precisamente para destruir as tensões que existem entre criação e produção. Devem ser duas coisas que se fundem.”

Para Vânia Rodrigues – uma das formadoras deste módulo, autora de um livro chamado As Produtoras. Produção e Gestão Cultural em Portugal e com uma tese de doutoramento acabada de vir ao mundo sobre este assunto a produção também é criação, mas deve ser emancipada em relação ao trabalho dxs artistas. Aliás, a “fórmula” artista-produtor não é algo que defenda, nem lhe parece ser uma inevitabilidade – apesar de, como diz David Almeida do colectivo Jangal, “nos tempos actuais ter de se pensar em tudo e de forma transdisciplinar, porque é preciso dinheiro para comer no fim do mês e porque não queremos desistir disto”. Vontade real ou exigência do mercado laboral neoliberal, especialista em gerar e glorificar o ser pau para toda a obra face à precariedade, que está sempre aqui e ali, ao virar da esquina?

David: Pois… A precariedade está muito presente nas nossas cabeças e foi uma coisa que discutimos muito no curso, especialmente com a Vânia.

Natacha: Tu queres apresentar, queres fazer, queres mostrar que consegues fazer, mas, por outro lado, também queres ter condições mínimas. Há esta tensão constante entre ser importante experimentar, mesmo que seja sem recursos, vs. a vontade de não ser cúmplice e não alimentar a precariedade.

Vânia: É certo que, em Portugal, as contingências do sub-financiamento da actividade artística em geral, e a precariedade em particular, conduzem a uma situação em que muitxs artistas começam por auto-produzir-se, e não vem disso especial mal ao mundo. Mas interessa-me muitos outros aspectos: como fazer para que essa contingência não se transforme no status quo? E, sobretudo, quanto dessa contingência é directamente imputável aos excessos neoliberais, e quanta é também responsabilidade do predomínio do modelo ‘um/a artista = uma estrutura’, em detrimento de formas plurais de organização da actividade artística? No Recurso não se tratou nem de formar produtorxs nem de formar artistas-produtorxs. Tratou-se de não perder a oportunidade de convidar um conjunto de artistas jovens a relacionarem-se criticamente com a dialéctica criação-produção, questionando os termos em que habitualmente essa relação lhes é proposta e que, essa sim, é inequivocamente demasiado colada aos mecanismos de mercado. Ora, a relação entre a arte e os modos de a produzir não é, não pode ser, reduzida aos modi operandi do mercado…

O Recurso, nota Vânia Rodrigues, foi também uma oportunidade para “sabotar as expectativas” do grupo em relação ao que seria um módulo de produção. Enquadrá-lo numa dimensão teórico-crítica, não fazendo dele apenas uma “caixa-de-ferramentas accionável”. De resto, Vânia procurou também problematizar “as implicações da persistência do mito ‘artista enquanto génio’”, para quem xs produtorxs são encaradxs, tantas vezes, como criadxs ao seu serviço.

Natacha: “Eu fui produtora da primeira edição do Recurso. Já estou ligada ao teatro desde os 14 anos, como criadora, intérprete-criadora, produtora. Comecei a trabalhar profissionalmente como produtora porque era a saída mais fácil para ter um emprego mais ou menos estável sem abandonar o teatro. Mas senti-me muitas vezes num lugar de frustração, porque o meu prazer na produção era estar ligada à criação e isso é constantemente separado.”

 

 

Confrontos geracionais e reposicionamentos. “Elxs não sabem quem é o Cavaco Silva!”

 

“Contrary to Kant’s dictum of ‘disinterested pleasure’, the arts are not ideologically neutral. They are, in fact, one of the many arenas where conflicting ideas about who we are, and what our social relations should be, are pitted against each other. Encoded in cultural productions are interests, beliefs, and goals. And, in turn, they affect what is at stake for us, what we believe, and what we strive for. Artists and arts institutions – like the media and schools – are part of what has been called the consciousness industry.” — Hans Haacke, “The Symbolic Capital. Management or what to do with the Good, the True, and the Beautiful”

 

As apresentações finais estão a corresponder às vossas expectativas?

José Nunes (JN): Não podemos falar propriamente em expectativas. É mais uma questão de ver o que as pessoas produzem e perceber o espectro das criações. Nesse aspecto, estamos bastante contentes com a diversidade dos projectos e com a sua relação com o curso. Conseguimos identificar coisas que surgiram em determinadas formações e em laboratórios. 

Cátia Pinheiro (CP): Eu encontro pontos, em todos os projectos, relativos ao percurso que elxs fizeram aqui, e isso é bonito de se ver. Mas expectativas? Não poria as coisas nesses termos. A minha expectativa era que houvesse um grupo a quem isto servisse, independentemente do resultado destas mostras, que são mostras informais, em início de processo. A ideia é que isto fosse um sítio para pensar e dialogar com xs pares, e isso aconteceu. 

Zé e Vânia, como foi lidar com este grupo?

José Maria Vieira Mendes (JMVM): Eu apanhei-xs muito no início e depois na recta final. Por causa da pandemia, houve coisas que deviam ter acontecido fora do contexto. Estava com medo que certas relações que elxs estabelecessem ficassem perdidas, mas ainda assim acho que existiu uma vontade muito forte de as pessoas comunicarem umas com as outras. E isto só funciona assim. Uma das ideias-base do Recurso é essa: não só estimular a relação que têm connosco, mas a que têm entre elxs. Claro que não conseguimos prever como isso acontece, nem queremos, mas é o que pode ser interessante: ter pessoas que são mais ou menos da mesma geração, que andam à procura de coisas paralelas, apesar de estarem em universos diferentes, e de repente poderem cruzar-se, conhecer-se, trocar ideias. 

Vânia Rodrigues (VR): Mas sem serem forçadas a colaborar, o que me parece ser um pressuposto importante do Recurso. E isso foi um ponto bastante delicado na fase final, decidirem se trabalhavam a solo, em duplas, em triplas, em colectivo, e todas essas opções têm muitos significados nas artes performativas. Acho que elxs tomaram decisões muito inteligentes face à conjuntura, inclusive o pouco tempo de criação que tiveram. Foram autorizadxs a não apresentar nada, e eu estava à espera que houvesse alguém a não apresentar.

CP: Eu estava completamente à espera, mas apresentaram todxs. Isso é um sinal de inteligência por parte delxs: da leitura que fizeram de um contexto, da decisão que tiveram de tomar entre explorar ideias que já tinham e/ou que receberam ou desenvolveram durante o curso, de aproveitarem a oportunidade para trabalhar, ou não, com alguém.

Fazer este tipo de formação com gerações mais jovens pode servir como uma espécie de barómetro do que pode vir aí – ou parte do que deveria vir aí – nas artes performativas? 

[riso disparado e sonoro de Cátia]

VR: Elxs não sabem quem é o Cavaco Silva!

Não? Sorte a deles. Não sabem quem é o Cavaco mas sabem quem é a Silvia Federici.

JN: É verdade. No primeiro laboratório, que foi uma espécie de história do teatro e artes performativas condensada em dois dias, várias referências que eram óbvias para o grupo do Recurso de 2018, muito pouca gente aqui conhecia. Tipo o Insulto ao Público do Peter Handke, a performance Lips of Thomas da Marina Abramovic… Por outro lado, quando eu falava de cultura visual já havia mais identificação. Foi muito engraçado perceber que, em três anos, há diferenças consideráveis nas referências e nas coisas que trazem. A idade média deste grupo é consideravelmente mais baixa do que a da primeira edição.

CP: Este grupo é mais heterogéneo nos backgrounds, o outro era mais ligado ao teatro. São pessoas muito diferentes, mas todxs com interesse nas artes performativas. Nesse sentido, foi muito rico.

Todxs elxs falam muito sobre a questão da interdisciplinaridade. Acham que este vai ser, cada vez mais, o caminho?

JMVM: Eu acho que muitxs delxs nem sequer estão no sítio de perceber isso como um problema.

CP: Isso é fixe e refrescante.

JMVM: Pode ser aqui, no Vimeo, no telemóvel, onde for… Nós é que continuamos nesta coisa do pós-dramático, eles já estão no pós-medium. Há quem ainda não tenha percebido, mas a maior parte das pessoas já está aí. Aliás, havia pessoas que já estavam aí nos anos 90.

Mas o circuito teatral português ainda não reflecte muito isso…

JMVM: Pois não. Tal como acontece na Rua das Gaivotas 6, sinto que quando aparecem pessoas mais novas, os projectos são mais interdisciplinares e não têm uma grande preocupação com o dispositivo de apresentação. Há uma liberdade… Mas há outras coisas que não são tão livres. Nós tivemos algumas conversas sobre o lado que nós achávamos que era mais didáctico ou mais panfletário, e andámos muito à volta disso nas discussões. A nossa geração é mais cínica. Então há uma dificuldade em lidar com esta sinceridade.

Em que sentido?

JMVM: Acho que é pouco crítica. Eu percebo de onde vem essa necessidade, mas é pouco complexa, do meu ponto de vista.

Referes-te às questões identitárias?

JMVM: Por exemplo.

É panfletário?

CP: Não.

JMVM: Às vezes é. Mas a minha questão era mais centrada no entrelaçar entre política e artes. Como é que a gente consegue, hoje, falar de política, ou o que é a arte política. Há um ponto em que acho que estamos de acordo, no que toca à necessidade de complexificar, se não estás só a reproduzir o discurso que o António Costa está a fazer no parlamento. Ou seja, estás a servir um sistema. Nós temos o privilégio de não ter que responder no imediato, ter mais tempo e ler mais coisas. E é isso que devemos utilizar a nosso favor. Não quero dizer, com isto,  que as pessoas não lêem. Estou a dizer é que há um sítio que elas não querem largar, abdicar. Mas pode ter a ver com a fase da vida, de terem de responder do sítio onde estão.

JN: Há pessoas que não podem sequer abdicar desse sítio porque saem à rua e são agredidas. Há coisas estruturais que te obrigam a reagir. 

CP: Agora vive-se mais no imediato. Nós crescemos noutro tempo. Todxs nós aqui nos lembramos de não haver telemóveis…. Agora parecemos uns Velhos do Restelo a falar.

JMVM: Mas eu não estou a dizer que isto é mau ou é bom. É só uma maneira de pensar diferente, e talvez seja uma falha minha eu não conseguir perceber bem qual o sítio a partir do qual algumas destas pessoas querem estar. Sei que é diferente do meu, porque acho que o meu cinismo nem sequer lhes serve. E também não acho que tenham de encontrar já esse sítio.

Para estas gerações, em determinados meios, falar sobre questões de género, vivências queer, sexualidade, saúde mental, etc, já faz parte do dia-a-dia…

VR: Isso é um sinal ainda mais óbvio de que elxs não podem ficar aí. Para as outras gerações, isso foi uma conquista. Agora já não é uma transgressão. Logo, não é um bom sítio para estarem artisticamente. Ou só estarem aí. 

CP: Mas a questão do imediato de que eu estava a falar também pode passar por esse primeiro embate, que é elxs saírem daqui, terem de lidar com isso e terem de se afirmar nesse sítio.

VR: Elxs desenvolveram uma hiper-sensibilidade para determinados assuntos e, muitas vezes, o uso da ironia, do cinismo, com elxs não funciona. Não sei explicar bem isso, mas concordo com o que o Zé Maria disse sobre o cinismo.

JMVM: E isso obriga-te a repensar-te e a reposicionar-te, o que é bom. 

Em que aspectos?

CP: Tens pessoas à tua frente que estão a olhar para o mundo de uma maneira diferente e a reagir a ele de uma maneira diferente, e tu tens de entender como é que elas interagem com o mundo, que não é da mesma forma como tu interages. Como o Zé estava a dizer, somos uma geração bastante mais irónica e, de repente, tens de perceber como é que aquelas cabeças reagem para, ponto 1, não ofender ninguém; e, ponto 2, para ser construtivo no modo como dás feedback.

JN: Um exemplo concreto é na mentoria, nos laboratórios: não ser aquilo que eu gosto ou quero fazer, mas perceber qual é a vontade daquela pessoa e perceber como posso potenciá-la com o meu contributo, de forma a que seja alcançada. Isso implica anular certos esquemas de pensamento, às vezes mais do que eu estava à espera. Tenho de dar esse passo atrás porque, de outra maneira, poderia estar a castrar ou a condicionar uma fase em que as ideias ainda não se desenvolveram ou maturaram.

Mas vocês não chegaram a responder a uma questão que eu lancei no início: se as inquietações que elxs partilharam, se a forma como elxs vêem o que é teatro e o que não é; se há alguma coisa aqui que possa servir de farol para alguma mudança que possa vir, ou devesse vir, a acontecer…

VR: Acho que é uma pergunta super pertinente – e tu não te vais calar se nós não dissermos alguma coisa -, mas temos de olhar para o Recurso como uma experiência microscópica. Não podemos pedir a uma iniciativa de três meses, que se realiza durante uma pandemia, para concretizar certas coisas que nós pensamos da vida cultural do Porto. Não podemos transformar expectativas privadas, vindas de uma certa frustração – de onde o Recurso também nasce, obviamente – numa espécie de ajuste de contas. A desierarquização é a coisa minimamente palpável que pode vir a acontecer. 

Desierarquização de?

De tudo: das linguagens propostas, da criação e da produção, da relação entre elxs. Não é só a questão da interdisciplinaridade, é a forma como constroem – ou desconstroem – uma ficha técnica, uma folha de sala, como estão desprendidxs de pensar que têm de ter alguém creditado na dramaturgia, por exemplo. “Então quem escreveu esta folha de sala? Ah, foi uma amiga minha”. Isso é desierarquização. Não sei se serve como farol, mas é fixe. Dá esperança.