INTERFERENCE HEARD AS MUSIC
“I did not walk here all the way from prose
To make corrections in red pencil
I came here tonight to open you up
To interference heard as music”
Ben Lerner
Já explicarei o título (para aquelxs que gostam de decifrar os significados de tudo) mas deixem-me antes dizer aquelas coisas que se dizem em primeiro lugar.
em primeiro lugar
O segredo mais mal guardado do Recurso talvez seja o facto de que a equipa que o imaginou e colocou em prática desejaria mais frequentá-lo do que concebê-lo. Estamos mais interessados em ser alunos do que professores, se essa linguagem se aplicasse aqui (mas não se aplica). Impedidos de entrar nessa máquina-tempo, de voltar atrás e de reverter as práticas que tivemos de subverter e os adquiridos de que quisemos abrir mão, não nos restou alternativa senão tentar interferir no presente, imaginando e pondo à disposição de outrxs algumas coisas que gostaríamos de ter sabido e experimentado antes. Mas “não há recusa da forma precedente”, como diz a Mafalda Banquart num texto aqui ao lado. Fomos a Recurso montados no que fizemos antes, quase a cair do cavalo.
No meu caso, fui a recurso pela segunda vez. Em 2018, tive uma participação tangencial, porque a realização do curso acabou por coincidir com a minha decisão de saída da mala voadora. Antes disso, tinha conversado muitas vezes com a Cátia e com o Zé, à porta daquela blackbox na rua do almada, acerca desta ideia de curso, que se cruzava com uma certa ideia de cidade e de ‘comunidade artística’ a trabalhar no Porto.
“ – But tell me: how do you create a scene?”(1)
Não é que o ‘Porto’ (a cidade, não a marca) fosse exactamente o vértice das nossas inquietações, mas não seria totalmente verdadeiro desligar as primeiras intenções que deram origem ao Recurso, do nosso olhar para as possibilidades e fragilidades de uma ‘cena’ artística e cultural que parecia estar a começar a desenhar-se naquela altura na cidade. Nessa cena (se é que ela chegou a existir ou existe hoje) víamos, como todos viam, novos agentes, espaços, e programas, muita efervescência e novidade, que se recebia com bonomia e ansiedade compreensível; mas sentíamos falta de outras coisas sem as quais, desconfiávamos, a sedimentação do que estava a iniciar-se não se daria. Chamem-lhe ética, chamem-lhe partilha, chamem-lhe independência – chamem-lhe o que quiserem, façam a vossa parte.
Três anos depois isto continua a fazer sentido, porventura ainda mais, porque os tempos que atravessamos não são suaves. Já que é para andar à chuva pelo menos vamos de mão dada.
um título que é um problema
É certo que a designação ‘Recurso’ é, sobretudo, uma provocação-relação com a academia, isto é, com a ideia e com as práticas dominantes de ‘teatro’ (e de ‘escola’) que subjazem e justificam a estruturação e os conteúdos da oferta formativa dedicada, com a qual queríamos dialogar. Mas, para mim, é possível extrair do título ‘Recurso’ ainda um outro significado, directamente relacionado com o lugar que a produção, convencionalmente, ocupa nas artes performativas. É que os recursos (angariá-los, geri-los, sustentá-los, justificá-los…) são o trabalho dxs produtores, tal como são predominantemente entendidxs, num contexto em que as funções da produção e da gestão cultural são muitas vezes valorizadas apenas e na medida em que representam mecanismos de viabilização/facilitação da prática artística, e raramente consideradas pelo contributo específico que podem aportar. Na minha investigação, reflicto acerca da acentuada instrumentalização destas profissões a favor das suas competências de angariação de financiamentos, num quadro de escassez e hipercompetição, e concluo, entre outros aspectos, que esse estreitamento de vistas concorre para desvalorizar o contributo que estes profissionais podem trazer aos projectos artísticos, tornando-os facilmente dispensáveis, ou mantendo-os externalizados ou encaixados na categoria de ‘mal necessário’ (para lidar com as dimensões aborrecidas ou ‘sujas’, como as relações administrativas com o Estado ou a perseguição do dinheiro). Ora, justamente, da minha experiência e entendimento decorre que recursos não são nunca apenas recursos – recursos traduzem, ampliam ou diminuem contextos, práticas, éticas, significados e alcance. Modos de produzir são, afinal, modos de viver.
Ao permitir que a produção comesse à mesa dos reis, sentada a pensar ao lado da criação e da teoria, o Recurso 2021 constituiu uma oportunidade inestimável para relacionar a investigação que tinha na altura em mãos(2) com as necessidades e interrogações concretas de um conjunto de criadores que estavam mais ou menos no início do seu percurso. (Por essa oportunidade, obrigada, Cátia e Zé; e pelo diálogo, obrigada a todxs xs participantes).
fazer é pensar
Decidimos cedo que Teoria, Criação e Produção seriam um tripé fundamental do curso; que seriam emparelhados e que estes elementos teriam autonomia epistémica, não existindo apenas em função uns dos outros. Do ponto de vista da produção, é verdade que não conseguimos fazê-lo totalmente, desde logo porque os participantes/candidatxs quase todxs se identificavam como criadorxs. Mas o primeiro passo estava dado, e, mesmo que falho, parece-me que foi um gesto relevante, face ao modo como tanto a produção como o pensamento crítico ainda são tratados ao lado da senhora dona dramaturgia, da senhora dona técnica vocal e de duzentos e trinta tratados de encenação. Para além disso, decidimos também que a produção não seria apenas posta ao lado e em relação com os outros elementos: decidimos que estaria presente logo na abertura do curso (quando começa a produção, antes da ideia ou depois dela? na sua concepção ou viabilização?); e que começaria por ser abordada num módulo teórico (mas a produção pensa-se? produzir não é fazer?). Subjacente a esta decisão está o entendimento que venho propondo de que persiste uma ‘miopia’ (Sampaio, 2020) em torno da função de produtorxs e gestorxs que as vê como funções meramente executivas (num lugar eminentemente pragmático, subordinado e invisibilizado), por um lado, e a própria ideia de que executar, isto é, fazer, não comporta uma dimensão reflexiva; algo que é amplamente contrariado pelas experiências de quem produz e gere quotidianamente projectos artísticos(3). Fazer é pensar, tal como explica Richard Sennet (2009) ao problematizar a relação entre actividades ‘mentais’ e actividades ‘práticas’, sublinhando a inseparabilidade entre umas e outras, entre ideias e práticas. Porém, é justamente esta relação dialéctica entre ‘ideias e práticas’ que tem sido debilmente transposta para os percursos formativos especializados. Estes permanecem fortemente duais (em termos da separação efectiva dos ‘ramos’ de criação e produção, por exemplo) e, no caso da produção/gestão, tendencialmente focados no desenvolvimento de aspectos técnicos e práticos de ‘apoio’ à esfera artística, dificilmente se encontrando, nos respectivos currículos, evidências do hibridismo e da complexidade que estas profissões de intermediação comportam. No mesmo sentido, a produção continua a ser sobretudo leccionada no contexto do ensino politécnico, a isso correspondendo um preconceito relativamente ao seu enquadramento enquanto ‘técnica’ e à sua filiação mono-disciplinar (sobretudo inserida em cursos de teatro). Esta não parece ser uma situação redutível à esfera da produção, antes decorrendo de um entendimento do ensino da arte fortemente ‘vocacional’ e no qual a ‘hibridação das disciplinas na arte contemporânea’ não tem eco (Cordeiro, Fálcon e Mendes, 2022)(4).
Face às necessidades no terreno, não se trata apenas ou sobretudo de existirem poucos cursos na área da produção e da gestão de projectos artísticos e culturais, mas de os cursos que existem – dentro e fora da academia – terem diversas limitações (as que acabei de referir e outras que não cabem neste texto), e, sobretudo, de revelarem falta de historicidade, sendo predominante a oferta de formação prática, táctica e descontínua, com temporalidades formativas estreitas.
Com efeito, tendo em conta a progressiva estruturação do campo artístico, as suas dinâmicas de complexificação, especialização e internacionalização, é evidente que já não estamos na fase auto-didacta, em que se aprendia fazendo, criando ferramentas ad hoc para resolver os problemas organizativos concretos com que os profissionais se iam deparando. Justamente, desenvolveu-se entretanto um conjunto de respostas especializadas no ensino superior e politécnico, e é nessa fase que seria expectável que se tivesse produzido um ‘amadurecimento’ da área da produção/gestão que problematizasse o seu papel e lugar, e que, porventura, ‘corrigisse’ os excessos utilitaristas que ainda são discerníveis nas tendências formativas da área. Mas, chegados a 2022, são muitos os sinais de que esse amadurecimento não terá acontecido plenamente. Na verdade, a maioria dos cursos ou módulos de formação, dentro das licenciaturas ou avulsos, podem ser vistos menos como formação, no sentido amplo da palavra, do que enquanto acções de informação e disciplinamento técnico-comportamental. Neles, subtrai-se à área tanto a sua dimensão conceptual (a produção na sua relação com o projecto/intenções artísticas) como a dimensão crítica (xs produtorxs enquanto sujeitos que interferem no campo cultural e na sociedade). O que sobra é a matéria-prima de ordem prática estritamente necessária ao desempenho das profissões de produção e gestão cultural, desproporcionalmente assente (nos casos menos maus…) na ‘experiência prática’ de alguns professores/profissionais, deficitária em termos críticos e epistemológicos (Rodrigues, 2022) e que, sobretudo, não “prepara os alunos para novos modos de fazer as coisas” (Brkic, 2009:3).
Esta tem sido, efectivamente, a minha experiência na esfera do ensino. Chegam-me pontualmente convites para dar aulas ou sessões de formação. Invariavelmente, contactam-me para que eu forneça aos alunos, a partir da minha experiência ‘de sucesso’ (suspiros…), conhecimentos ‘práticos’ acerca da profissão, sublinhando que seria útil que focasse a minha abordagem na ‘angariação de financiamentos’ e ‘no meu percurso’. Normalmente, neste ponto, dou início a uma discussão-negociação com a entidade que formulou o convite, no sentido de alargar o espectro (e o número de horas) da formação a ministrar, procurando que inclua, a par desses ensinamentos práticos/técnicos, uma reflexão acerca do que dá origem e/ou valida as práticas ‘bem-sucedidas’ que me incentivam a partilhar com os destinatários. Verdadeiramente, a pressão vem também dos próprios participantes. Sempre que começo, perante xs alunxs, a desconstruir, por exemplo, a ideia de que eu – por ter efectivamente já elaborado, ‘ganho’ e avaliado um par de candidaturas a apoio no contexto nacional e internacional – ‘sei’ fazer candidaturas, noto que se instala, temporariamente, uma certa desilusão. Onde está, afinal, a ‘caixa de ferramentas’ prometida? Quais são os atalhos e ‘truques’? A minha investigação incide fundamentalmente na dimensão do porque-fazer na produção e gestão cultural e na possibilidade de emergência de um discurso da prática (Rodrigues, 2022) mas isso não significa que a dimensão mais prosaica do saber fazer esteja resolvida – constitui, aliás, mais uma dimensão que carece de aprofundamento intelectual. Experimentei dezenas de vezes esta dissonância entre o ‘saber fazer’ e a noção plena de ‘saber’. Terei feito, até à data, mais de cinquenta candidaturas formais (sem mencionar pedidos de apoio mais simples, traduzidos em emails, cartas ou reuniões). Umas mais simples, correspondendo ao preenchimento de um formulário pré-existente, outras mais complexas, implicando uma minuciosa descrição de todo o projecto em causa; umas cuja aprovação significaria ‘apenas’ a viabilização de um determinado projecto ou espectáculo, outras cujo montante financeiro asseguraria a sobrevivência de uma estrutura artística ao longo de vários anos. Felizmente, ‘ganhei’ a maioria delas. Mas perdi outras tantas. O que dizem de mim, da minha competência específica enquanto gestora cultural, essas candidaturas ganhadoras? Quanto do seu sucesso é atribuível à minha capacidade de as elaborar?
Estas e outras discussões são reveladoras não apenas do défice crítico e epistemológico desta área, mas, em igual medida, do tipo de profissionalização que para ela se reivindica. Por tudo isto, o Recurso foi – entre outras coisas – uma oportunidade de visibilizar e discutir, à cabeça, a forma como o tema (não) é tratado nas escolas onde xs artistas se formam, e assim começar a compreender a razão pela qual tantxs artistas e produtorxs começam as suas trajectórias profissionais com ideias bastante vagas e/ou desajustadas acerca do que é a produção, acerca do que pode ser a relação entre criação e produção, e acerca de para que serve, em última análise, a profissionalização de produtorxs e gestorxs a trabalhar nas artes.
Em Portugal, a trajectória de profissionalização das estruturas artísticas foi progressivamente significando uma divisão e especialização de funções, entre as quais a produção, embora subsistissem, por muito tempo e ainda hoje, muitas sobreposições efectivas na distribuição das responsabilidades, por força dos fortes constrangimentos económicos do sector, que têm sido um claro obstáculo não só à criação de condições de trabalho dignas como ao próprio estabelecimento de equipas dedicadas. Estas dificuldades justificam (embora não totalmente)(5) a manutenção da figura dxs ‘artistas-produtores’, sendo a situação dx artista que se auto-produz particularmente evidente no início da sua trajectória profissional. No Recurso, concretamente, não se tratava nem de formar produtores nem de formar artistas-produtores. Tratava-se, sim, de não perder a oportunidade de convidar um conjunto de artistas jovens a relacionarem-se criticamente com a dialéctica criação-produção, questionando os termos em que habitualmente essa relação lhes é proposta, e instigando-os a reflectir acerca das razões que justificam a fórmula artista-produtorx, para lá das contigências do sub-financiamento(6).
processo de (des)profissionalização em curso
A área da produção e da gestão cultural apresenta défices evidentes de profissionalização e de especialização, em aparente contradição com a valorização, particularmente nos discursos das pessoas mais novas, da importância destas profissões no contexto das actividades e estruturas artísticas. Ora, as condições objectivas de trabalho dxs produtorxs e gestorxs, o reconhecimento social e a (ausência de) discussão crítica do seu papel no ecossistema das artes parecem indicar que essa valorização corresponderá mais a uma apropriação discursiva do que substantiva. É mesmo possível argumentar que a profissionalização deste campo não está apenas inacabada mas é ainda contestada, na medida em que são discerníveis discursos públicos que não se revêem na trajectória de especialização das funções de produção e gestão, seja por entenderem que elas são integrais à actividade de um/a artista ou por associarem estas funções a uma deriva mercantilista da arte. [Pausa para atentar devidamente neste último ponto.] Justamente, reflectir acerca da profissionalização desta área reconduz-nos à expressão ‘recursos’, uma vez que eles, os recursos (a sua diminuição, a necessidade de os encontrar e justificar) foram sistematicamente apontados como a principal razão para o crescimento de uma série de profissões de intermediação. A temporalidade histórica específica do surgimento e crescimento das profissões de produção e gestão cultural (no caso português como em vários outros territórios europeus e extra-europeus) – nos anos noventa – levou a que estas ficassem indelevelmente associadas, no plano simbólico, às políticas e orientações que privilegiavam a eficiência e a orientação para os resultados e para o mercado. São hoje, por isso, bastante notórios os equívocos daí resultantes, designadamente na desconformidade entre uma legitimação da área assente na racionalidade técnico-instrumental supostamente universal e pós-ideológica, e as práticas concretas, disposições, motivações e ambições dos profissionais do campo. A evolução da produção e da gestão cultural deu-se de forma acelerada e em estreita correlação com dinâmicas ‘exteriores’ às necessidades do campo, tanto em termos da sua coincidência temporal com a introdução de políticas de pendor neoliberal como na sua correspondência com a própria institucionalização do sector da cultura no seio do Estado. Daqui resulta que a representação social destas profissões esteja ainda hoje demasiado colada aos mecanismos de mercado. Ora, a relação entre a arte e os modos de a produzir não é, não pode ser, reduzida aos modi operandi do mercado. Precisamente, a tomada de consciência dos processos históricos de emergência e das circunstâncias de legitimação social das profissões organizativas da cultura, torna possível, hoje, que se interrogue a aproximação das práticas e dos modelos de ‘profissionalismo’ da produção/gestão cultural à ideologia do crescimento e do sucesso, questionando as suas conexões com os excessos do neoliberalismo que colocam estes profissionais como agentes facilitadores da mercantilização da criação artística e da participação consumista na sua fruição.
Assim, o módulo de produção/gestão no ‘Recurso’, com a sua componente teórico-crítica (para além da laboratorial), propunha que a produção e a gestão cultural podem ser vistas [pelos artistas] não apenas como um conjunto de competências orientadas para a acção, para o mercado e para a resolução de problemas [dos artistas], mas também como prática intelectual e, seguramente, como campo de pesquisa e experimentação. Ao longo das sessões (curtas! poucas!) procurei explorar que não há contradição entre os elementos de racionalidade que são francamente definidores destas profissões e a possibilidade de uma apropriação crítica dos pressupostos de gestão e dos modelos institucionais. A essa apropriação, intelectualmente emancipada, corresponderá uma capacidade de agir em registo de desobediência civil aos modelos estabelecidos, no sentido de garantir a não sujeição dos sujeitos, dos objectivos e dos sentidos da criação artística.
Mas os sentidos da profissionalização de produtorxs e gestorxs não devem ser apenas interrogados em função da sua proximidade à lógica racional e de mercado. Na verdade, a profissionalização destxs trabalhadorxs da cultura pode ser problematizada, igualmente, no quadro mais amplo da formação em artes performativas, em que recentemente se abriram discussões importantes. Duska Radosavljevic(7), por exemplo, faz um diagnóstico actualizado da formação em teatro no Reino Unido, segundo o qual a maioria das escolas especializadas (o equivalente aos nossos ‘conservatórios’, hoje, escolas superiores de teatro e dança) terá, historicamente, insistido numa formação que privilegiava uma abordagem mais baseada em competências do que uma abordagem intelectual, focada no aprimoramento de conjuntos de competências técnicas e nas perspectivas de empregabilidade dos estudantes (actores, produtores, encenadores, cenógrafos, etc), reproduzindo desse modo a divisão do trabalho oriunda do séx. XIX que ainda marcará muitas práticas institucionais de fazer teatro (rings a bell?). (E não apenas teatro: num curto texto-testemunho recente(8), Cristina Planas Leitão, artista e programadora, pergunta-se “por que razão, em 2022, a educação (…) de um performer se assemelha mais à de um atleta do que à de alguém com uma investigação artística?”). Em sentido contrário, Radosavljevic refere o ensino no contexto das universidades, que terão começado entretanto a oferecer cursos de teatro com maior ênfase na dimensão de pesquisa/experimental, e mais atentos, do ponto de vista das discussões que os seus currículos oferecem, às exigências “políticas, culturais, estéticas, filosóficas e técnicas do século XXI”, no qual temas como “a identidade, as alterações climáticas, os extremismos ou as migrações colocam novos desafios” à criação teatral. Destes cursos universitários estará a sair, segundo a autora, um conjunto relevante de ‘theatre makers’, formados em contextos mais fortemente interdisciplinares, mais confortáveis na exploração dos fundamentos críticos e experimentais da prática artística mas que não terão tido, necessariamente, formação em áreas de saber-fazer convencionalmente associadas à ‘profissionalidade’ em teatro. É a esse propósito que a autora fala em ‘desprofissionalização’, um processo que, apesar do prefixo ‘des’, Radosavljevic vê como essencialmente positivo, na medida em que estará a permitir a alguns destes recém-licenciados contornarem os processos profissionalizados de gatekeeping que se mantêm em vigor no campo teatral. (Isto também é o Recurso!) A hipótese que levanta a propósito da formação de fazedores de teatro é pertinente para a minha análise do ‘lugar’ da produção e da gestão: será que ainda precisamos de profissionalização de produtorxs e gestorxs, e de que tipo? Dito de outro modo: fará sentido continuar a formar produtorxs com base sobretudo num conjunto de competências práticas, razoavelmente afastados dxs criadorxs, e no contexto de uma determinada e única disciplina artística? Fará sentido, como já referi antes, manter esta área numa situação de sub-desenvolvimento crítico e epistemológico, ensinando a leitura de ‘riders técnicos’ mas não propondo – com a mesma importância – a exploração dos diversos e mutantes contextos organizativos, sociais, políticos e económicos nos quais a arte se produz?
Justamente, no livro ‘O Desensino da Arte’, a que já aludi, as autoras contestam um sistema no qual “não existe, entre as escolas de artes, circulação entre alunos” (2022:20), suspeitam da “sobrevalorização de competências técnicas e de ‘mestria’ nos casos da Música, Dança e Teatro” (ibidem:29) e questionam a “separação existente entre campos artísticos (…) e áreas consideradas técnicas” (ibidem: 24). Não incidindo o seu livro sobre as dimensões organizativas da actividade artística, parece-me perfeitamente possível estabelecer um paralelo entre as premissas que defendem (e que partilho) e a produção e a gestão: fará sentido, no panorama artístico contemporâneo, que a produção seja leccionada num único contexto disciplinar específico, sobretudo ao nível de uma licenciatura? Fará sentido, numa formação inicial, ter produtores ‘especializados’ em teatro, ou em dança, ou em cinema? Produzir e gerir um espectáculo é, seguramente, diferente de produzir um projecto cinematográfico ou uma exposição. Não desconsiderando a especificidade da linguagem do teatro, da dança, da música, do cinema, da instalação ou da performance – serão tão distintos assim os conjuntos de saberes e de competências necessários para se produzirem e gerirem actividades e iniciativas artísticas e culturais? A resposta é parcialmente dada pelas próprias autoras, quando afirmam: “O Ensino que aqui propomos parte do princípio de que aquilo que define o trabalho em arte é a ideia de projecto.”
O aprofundamento que proponho das múltiplas possibilidades de exercício destas profissões (sobretudo a dos chamados ‘produtores criativos’ mas também, genericamente, dos ‘gestores culturais’) decorre exactamente de um entendimento híbrido e compósito da produção e da gestão, que combina aspectos práticos e mundanos (logística, orçamentação, planeamento) com dimensões estratégicas, críticas e criativas, operando uma alternância constante e muito subtil entre as orientações e exigências artísticas e organizativas. Recusando modelos porventura ultrapassados de profissionalismo, defendo mesmo a reconceptualização da produção como actividade ‘artesanal’, através de um ajuste permanente e muito apurado entre os requisitos da criação e as modalidades e papel da produção e da gestão, evidenciando o poder agencial de produtorxs e gestorxs e sublinhando as suas subjectividades, capacidades reflexivas e contributos, tanto no plano da eficiência como da experimentalidade.
Reconhecer a pertinência de formar produtorxs, gestorxs, e artistas num contexto que favoreça e incentive a experimentação de diversas linguagens, contextos e dispositivos, permitindo que testem as suas predisposições e afinidades, que ensaiem modos de interferência mútua assentes em lógicas des-hierarquizadas é desejar a multiplicação de ‘Recursos’, dentro e fora da academia. (Com isto julgo que terei explicado o título deste texto. Que os modos de produzir deixem de ser interferência, e passem a ser percebidos como parte da música.)
Vânia Rodrigues
Abril 2022
Referências:
(1) Pergunta de uma convidada do programa Pláka, reproduzida no texto do Guilherme Blanc em “To School out of School”, 2020.
(2) É importante referir que esta investigação foi possível através de financiamento público, obtido através de concurso a uma Bolsa Individual de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/136458/2018). Com apoio do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares | Universidade de Coimbra, o essencial dessa investigação será brevemente objecto de publicação em livro, pela Editora Caleidoscópio.
(3) Cf. testemunhos que incluo em As Produtoras – Produção e Gestão Cultural em Portugal. Trajectos Profissionais (1990-2019), ed. Caleidoscópio, 2020.
(4) A este respeito acaba de sair um belíssimo livro, O Desensino da Arte, de Marta Cordeiro, Marisa Fálcon e Maria Sequeira Mendes, editado pela Sistema Solar (2022).
(5) Existem outras interpretações do trabalho/inscrição social dxs artistas, que resultam numa defesa do ‘artista enquanto unidade de negócio’ (expressão do Miguel Abreu), numa perspectiva auto-suficiente. Trata-se de uma interpretação seguramente legítima mas que não corresponde à exploração que faço e proponho do tema e da estruturação das profissões no campo artístico, e que, por essa razão, não é destacada neste texto.
(6) Não me alongando acerca disso aqui, procurei discutir com elxs quanto dessa contingência é directamente imputável aos excessos do capitalismo neoliberal, e quanta decorrerá também, do predomínio do modelo ‘um artista=uma estrutura’, em detrimento de formas plurais de organização da actividade artística.
(7) Em intervenção oral no Seminário Internacional ‘Modos de Produzir – Artes Performativas em Transição’, que co-coordenei juntamente com Fernando M. Oliveira, numa parceria CEIS20/TAGV, em Outubro de 2021.
(8) “The gurus are over”, texto-testemunho incluído no programa do Festival DDD 2022, disponível em www.festivalddd.com